You are on page 1of 67

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE


DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA
XIV CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM SAÚDE
COLETIVA – SAÚDE DA FAMÍLIA

A TRANSDISCIPLINARIDADE NO TRABALHO EM EQUIPES DO


PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA: UM ESTUDO DE CASO

Orientadora: Prof. Dra. Ximena Pamela Díaz Bermúdez

Leonardo Lima Lemos


Núbia Reineiros
Victor de Morais

BRASÍLIA, 2006
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA
XIV CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM SAÚDE
COLETIVA – SAÚDE DA FAMÍLIA

A TRANSDISCIPLINARIDADE NO TRABALHO EM EQUIPES DO


PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA: UM ESTUDO DE CASO

Orientadora: Prof. Dra. Ximena Pamela Díaz Bermúdez

Leonardo Lima Lemos


Núbia Reineiros
Victor de Morais

Pesquisa elaborada para


conclusão do curso de
Especialização em Saúde
Coletiva da Universidade de
Brasília - UnB

BRASÍLIA, 2006
Dedicamos este trabalho A Deus,

Aquele que nos concedeu o maior presente -

o dom da vida.
Agradecimentos

À nossa orientadora, Professora Pámela, que em nenhum momento nos


privou da esperança de sucesso na construção de um trabalho tão difícil
como este.

Aos nossos familiares, pelo apoio incondicional em mais um projeto de


nossas vidas.

Aos profissionais das unidades estudadas, pela colaboração na pesquisa


realizada.

Aos gestores da Secretaria Municipal de Saúde de Unaí pelo apoio em prol


da educação continuada de seus recursos humanos.

A todo o corpo docente do Curso de Especialização em Saúde Coletiva da


UnB, pelos ensinamentos e amizade estabelecidos.

A todos os que nos hospedaram em Brasília, com tanta dedicação e


carinho, nos dias de curso.

Aos colegas de curso, pelas amizades geradas e pelo companheirismo nas


lutas por uma melhor assistência à saúde.
“Se trilharmos sempre o mesmo caminho,
chegaremos sempre ao mesmo lugar”.
Autor desconhecido
Resumo

Este estudo teve como objetivo elucidar a concepção sobre a

abordagem transdisciplinar e sua aplicação no âmbito das equipes do Programa

Saúde da Família. Tratou-se de um estudo de caso articulando métodos

quantitativos e qualitativos, tendo como referencial teórico a compreensão das

práticas transdisciplinares realizadas nas equipes de saúde. Foram

entrevistados 23 profissionais de saúde das unidades 3 e 4 do Programa Saúde

da Família do município de Unaí (MG), no período de julho de 2006. Por meio

da análise das entrevistas, foi compreendido que as unidades estudadas são

propícias à construção de uma abordagem transdisciplinar em seu processo de

trabalho, tendo em vista os elementos favoráveis encontrados na pesquisa,

como a comunicação entre a equipe, a flexibilidade da divisão do trabalho, e a

constituição jovem dos recursos humanos que compõem o trabalho nas

unidades, o que requer, porém, uma mudança de comportamento e uma ruptura

com paradigmas que há muito têm norteado as práticas em saúde no Brasil.

Palavras-Chave: Transdisciplinaridade; Programa Saúde da Família;


Trabalho em equipes de saúde
Abstract

This study aimed at elucidating the conception about the transdisciplinary

approach and its application in the scope of the Family Health Program. It was

composed by a case study articulating quantitative and qualitative methods,

having as theoretical referential the understanding of the transdisciplinary

practices in the health team. 23 professionals of units 3 and 4 of the Family

Health Program in Unaí (MG) had been interviewed in the period of july of 2006.

Through the analysis of the interviews, it was understood that the studied units

are able to face the construction of a transdisciplinary approach in its work

process, once there’s been found favorable elements in the research, such as

the communication between the team, the flexibility of the work social division,

and the young constitution of the human resources that compose the work in the

units, what requires, however, a change of behavior and a rupture with

paradigms that has been guiding the health practices in Brazil.

Key Words: Transdisciplinarity; Family Health Program; health teams work


Sumário

Resumo........................................................................................................... p. 5
Abstract........................................................................................................... p. 6
Sumário............................................................................................................p. 7
Lista de Quadros.............................................................................................p. 8
Lista de Figuras...............................................................................................p. 9
Lista de Siglas..................................................................................................p. 10

1 INTRODUÇÃO........................................................................................p. 11
1.1 - Programa Saúde da Família: uma estratégia de mudança...................p. 11
1.2 - Processo de trabalho em saúde: aspectos históricos...........................p. 12
1.3 - A disciplinaridade: histórico e confluências............................................p. 13
1.4-Programa Saúde da Família: um campo de práticas
transdisciplinares?...........................................................................................p. 18
2 - OBJETIVO GERAL.....................................................................................p. 22
3 - OBJETIVOS ESPECÍFICOS......................................................................p. 22
4 - MÉTODO....................................................................................................p. 23
4.1 - Coleta de dados......................................................................................p. 23
4.2 - Caracterização da região do estudo .......................................................p. 25
5 - RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS ................................................p. 28
5.1 - Aspectos conceituais...............................................................................p. 28
5.2 - Abordagem transdisciplinar no trabalho em equipes de PSF.................p. 31
5.3. - Identificação e formação........................................................................p. 36
5.4 - Trabalho na equipe do PSF.....................................................................p. 42
5.5 - Transdisciplinaridade na equipe de PSF..............................................p. 49
CONCLUSÃO..................................................................................................p. 57
Lista de quadros

Quadro 1: Multidisciplinaridade: síntese segundo vários autores................p. 14


Quadro 2 – Pluridisciplinaridade: síntese segundo vários autores...............p. 15
Quadro 3 – Síntese de interdisciplinaridade, segundo vários autores.........p. 16
Quadro 4 – Transdisciplinaridade: síntese segundo vários autores.............p. 51
Lista de Figuras

Figura 1 – Idade dos entrevistados............................................................p. 37


Figura 2 – Sexo dos entrevistados............................................................p. 37
Figura 3 – Profissão...................................................................................p. 37
Figura 4 – Escolaridade.............................................................................p. 37
Figura 5 – Tempo de exercício profissional...............................................p. 37
Figura 6 - Participação em processos de formação multiprofissional nos
últimos 5 anos............................................................................................p. 38
Figura 7 - Tempo de trabalho nas unidades estudadas............................p. 42
Figura 8 – Forma de ingresso na equipe....................................................p. 42
Figura 9 – Participação em treinamento antes de ingressar na equipe.......p.43
Figura 10 – Existência de trabalho em equipe nas unidades estudadas...p. 45
Figura 11 – Existência de um trabalho que predomina sobre os demais...p. 46
Figura 12 - Existência de planejamento nas unidades...............................p. 48
Figura 13 – Participação na elaboração do planejamento.........................p. 48
Figura 14 – Concepção dos entrevistados quanto à superação das funções
pré-estabelecidas dentro da equipe...........................................................p. 54
Lista de Siglas

CRAS – Centro de Referência em Assistência Social

GRS – Gerência Regional de Saúde

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

PACS – Programa de Agentes Comunitários de Saúde

PSF – Programa Saúde da Família

SIAB – Sistema de Informação da Atenção Básica

SUS – Sistema Único de Saúde

USF – Unidade de Saúde da Família


11

1 INTRODUÇÃO

1.1 Programa Saúde da Família: uma estratégia de mudança

Nos últimos anos o Brasil experimenta uma transformação em seu

modelo de assistência à saúde. A atenção básica vem sendo implementada

como pilar e porta de entrada do Sistema de Saúde brasileiro, fato

comprovado pela criação de estratégias como o Programa de Agentes

Comunitários de Saúde (PACS), em 1991, e o Programa Saúde da Família

(PSF), em 1994.

Com o advento dessas novas estratégias, busca-se a mudança de um

cuidado centrado no indivíduo doente para ações de promoção de saúde,

sendo a família o foco da atenção. Da mesma forma, almeja-se uma

transformação do processo de trabalho, com a transição de atuações

isoladas para aquelas planejadas conjuntamente, visando estabelecer

vínculos de compromisso entre os profissionais e as famílias.

Pensando-se na reestruturação das relações profissionais no PSF, este

trabalho foi desenvolvido, estudando-se, a partir da realidade de duas

unidades do programa no município de Unaí-MG, a maneira em que se

implementa o trabalho em equipe na abordagem transdisciplinar. Entende-

se a necessidade de uma ação que organize o trabalho do médico e dos

demais profissionais, quebrando a costumeira divisão do processo de

trabalho em saúde, para que então seja possível enfrentar o desafio do atual

Sistema de Saúde: diminuição da internação hospitalar e um equilibrado

atendimento à população (ROSA e LABATE, 2005).


12

1.2 Processo de trabalho em saúde: aspectos históricos.

Desde as épocas mais remotas o homem tentou descobrir o motivo que

causava o adoecimento nos indivíduos. De concepções espirituais, que

consideravam a doença como fruto da ira dos deuses, passando pela Teoria

dos Miasmas, que considerava a causa das doenças como o ar contaminado

por impurezas, a doença passou a ser pesquisada com bases empíricas a

partir do século XVII, época que apresentou o filósofo francês René

Descartes como um grande expoente da ciência biomédica (COSTA, 2002).

Sabe-se que o modelo biomédico, de inspiração cartesiana, onde o corpo

humano era considerado uma máquina, e cada uma de suas partes

constituíam uma engrenagem desta máquina, influenciou fortemente a

prática dos profissionais de saúde. A doença é vista como o mal-

funcionamento de uma dessas muitas peças. Além disso, o filósofo francês

frisava a divisão entre corpo e mente, não admitindo que as emoções

pudessem influenciar na atividade do organismo humano a ponto de gerar

algum dano (PAUL 2000).

Surgia, pois, a tendência às especializações. A medicina se

fragmentava, focalizando seu escopo em partes cada vez mais reduzidas do

corpo humano. À medida que se voltava as atenções para a “parte”, o “todo”

estava sendo deixado de lado. O homem não era considerado um ser

holístico, e consequentemente não era atendido na sua integralidade. Esse

modelo serve de base para a lógica que reina nas práticas de saúde até os

dias atuais. O paradigma flexneriano, que surgiu a partir do relatório de


13

Flexner, em 1910, se tornou predominante no ensino e na prática médica a

partir deste período, dando ênfase à dimensão biológica, à doença e à

medicina curativa e, consequentemente, à concentração de recursos

(LAMPERT, 2003).

1.3 A disciplinaridade: histórico e confluências

A fragmentação da ciência, advinda do século XVII, tornou necessária a

divisão do conhecimento em disciplinas, o que deu origem à disciplinaridade,

que, nas palavras de Irribarry (2003, p.2), significaria “a exploração científica

e especializada de determinado domínio homogêneo de estudo”. Sendo

assim, uma disciplina acarreta um conjunto de conhecimentos com aspectos

próprios, e sua forma de ensino, de metodologia, e de formação.

Com essa nova forma de se pensar, baseada na divisão da ciência em

múltiplas disciplinas, um problema viria à tona: como se tratar um objeto

complexo a partir da disciplinaridade restrita? A abordagem de uma

determinada questão por uma dada disciplina seria eficiente para objetos

simples, com apenas uma dimensão, mas em situações com várias

referências e de caráter multidimensional, como a saúde humana, a

pulverização do conhecimento em inúmeras disciplinas não seria capaz de

solucionar os problemas do setor (CHAVES, 1998).

A tentativa de se confluir esta fragmentação disciplinar fez com que

pesquisadores das mais diversas áreas passassem a sugerir uma estratégia

de integração entre as disciplinas, de modo que o objeto final de estudo

pudesse se enriquecer com a colaboração dos mais variados campos, até


14

então tratados de forma isolada. Surgia então a multi, pluri, inter e

transdisciplinaridade, cada uma com maior ou menor grau de conexão entre

as disciplinas (ALONSO, 2005). Geralmente se observa uma profusão de

definições acerca desta perspectiva integradora entre as disciplinas, razão

pela qual, a seguir, são apontadas algumas diferenças entre cada

abordagem, na ótica de vários autores e suas aplicações na área da saúde,

iniciando-se com a multidisciplinaridade:

MULTIDISCIPLINARIDADE
Ocorre quando se deseja solucionar um problema, obtendo
CHAVES informações de duas ou mais ciências, de modo a não haver
(1998) modificação ou enriquecimento das disciplinas envolvidas no
processo.
Conjunto de disciplinas que tratam de uma mesma temática,
mas sem estabelecimento de relações no campo técnico e
ALMEIDA
científico. Há uma justaposição das disciplinas em um único
FILHO (1997)
nível, mas sem uma cooperação entre os diversos campos
disciplinares.
Análise de uma temática por um conjunto de disciplinas, através
PORTO e da investigação isolada por diferentes especialistas, sem,
ALMEIDA contudo, estabelecer relações entre os conceitos e métodos.
(2002) Corresponde à forma mais limitada de integração disciplinar,
reproduzindo práticas fragmentadas.
Interação de múltiplas disciplinas, cada uma com sua
GALHEIGO contribuição, mas sem o estabelecimento de laços que
(1999) possibilitem uma alteração na sua teoria e metodologia, embora
possa haver algum benefício dessa cooperação.

Quadro 1 – Multidisciplinaridade: síntese segundo vários autores


Autor / conceito
Segundo Almeida Filho (1997), a multidisciplinaridade tenta superar a

fragmentação pela somatória, como se fosse possível estabelecer uma

síntese pelo simples contato entre campos disciplinares diferentes. Ainda de

acordo com o autor, em se tratando de objetos complexos, particularmente

no campo da saúde coletiva, as suas limitações são evidentes.


15

A seguir são apontadas definições de pluridisciplinaridade, e como estas

são trabalhadas pelos autores mencionados:

PLURIDISCIPLINARIDADE
Justaposição de disciplinas científicas estabelecendo relações
ALMEIDA entre si, com objetivos comuns, mas sem haver coordenação
FILHO (1999) de ações e nem qualquer pretensão de se construir uma
axiomática comum.
Interação de diferentes disciplinas em torno de um dado objeto
GALHEIGO de estudo de uma delas, com enriquecimento da temática pela
(1999) cooperação entre os conhecimentos, mas sua finalidade fica
ainda restrita à disciplinaridade.
NICOLESCU
Estudo de uma disciplina na visão das outras.
(2001)

Quadro 2 – Pluridisciplinaridade: síntese segundo vários autores


De acordo com Irribarry apud Irribary (2003, p.3), na pluridisciplinaridade

“os profissionais cooperam, mas não se articulam necessariamente de

maneira coordenada”.

A abordagem interdisciplinar é aquela que primeiramente reconheceu a

real necessidade de um rompimento com os paradigmas de formação do

indivíduo, como sugere Siqueira (2003):

O mundo em rede não é um mundo homogêneo e rígido, mas


sim hiperplural, indeterminado e que se caracteriza pela
flexibilidade e pela imprevisibilidade das mudanças e aceleração
de seu ritmo. Sob este aspecto, há a necessidade de uma
formação interdisciplinar porque esta não se assenta em leis
universais, com regularidades e permanências, pois reconhece
que a realidade é complexa e, portanto, não cabe em esquemas
reducionistas.

Em seguida mostra-se como a interdisciplinaridade é compreendida

segundo alguns autores na literatura:


16

INTERDISCIPLINARIDADE
CHAVES Interação entre várias disciplinas, produzindo interações reais, com
(1998) reciprocidade no intercâmbio, o que leva a um enriquecimento mútuo.
Construção de uma axiomática comum a um conjunto de disciplinas,
ALMEIDA com uma delas ocupando um nível hierárquico superior, geralmente
FILHO (1997) pela proximidade da temática comum, coordenando o campo
disciplinar, gerando aprendizagens mútuas.
Estudo de uma temática por diferentes disciplinas, havendo desde
PORTO E
uma complementaridade, sem articulações axiomáticas, ou
ALMEIDA
predominância de uma disciplina sobre a outra, até a preponderância
(2002)
de uma sobre as demais, com ou sem uma axiomática comum
Estabelecimento de um diálogo entre diferentes disciplinas através do
GALHEIGO
intercâmbio entre conteúdos e métodos, podendo até haver a criação
(1999)
de novas disciplinas.
NICOLESCU Transferência de métodos adotados por uma disciplina a outra. As
(2001) finalidades, porém, permanecem limitadas à pesquisa disciplinar.
Perspectiva mais rica, pois visa articular diferentes disciplinas. Essa
MARGUTTI
articulação, porém, é pobre, pois as disciplinas são, em si,
(2004)
independentes.

Quadro 3 – Síntese de interdisciplinaridade, segundo vários autores

Almeida Filho (1997) destaca que os modelos de pluri e

interdisciplinaridade revelam mais propriamente um caráter ideológico,

normativo, do que uma forma de se aproximar, pela prática, objetos

complexos.

O autor destaca ainda a seqüência de insucessos na condução da

organização do saber em saúde na medicina preventiva

(multidisciplinaridade), da medicina comunitária (pluridisciplinaridade) e da

medicina integral (interdisciplinaridade).

A interdisciplinaridade, uma das práticas preconizadas no trabalho em

equipe do PSF, foi estruturada na busca de modelos de atenção que

pudessem atender as demandas sociais de modo mais integral. Entretanto,

este projeto interdisciplinar é prejudicado por fatores como o corporativismo


17

profissional, que se preocupa mais com os espaços de atuação de uma

respectiva categoria, em revelia às necessidades coletivas (GALHEIGO,

1999)

Galheigo (Op. Cit, p.2.) afirma que

as incursões interdisciplinares atuais (...) não tem conseguido se


constituir enquanto princípio e realidade das ações de saúde no
país. Muito menos têm provocado uma ruptura nos antigos
padrões de atenção, organizados a partir da especialização da
formação, da manutenção do monopólio do exercício
profissional e da concepção biomédica da saúde.

Finalmente, a transdisciplinaridade busca a unidade do conhecimento,

reconhecendo o pensamento clássico como possuidor de um restrito campo

de atuação e com limites muito delimitados para compreender os fenômenos

complexos (GARAFFA, 2004).

Paul (2000) relata que, a partir da década de 1970, com as limitações das

abordagens pluri e interdisciplinares frente aos problemas ligados à

complexidade, aparece a transdisciplinaridade.

O mesmo autor nos lembra que o novo termo parece ter sido enunciado

pela primeira vez pelo filósofo suíço Piaget em 1970 num encontro

acadêmico, em que o pedagogo expressava seu desejo de ver as relações

interdisciplinares serem sucedidas pela transdisciplinaridade, com a

anulação das fronteiras estáveis entre as disciplinas.

Nicolescu apud Galheigo (1999) aponta os três pilares da metodologia da

pesquisa transdisciplinar: os níveis de realidade, a lógica do terceiro incluído

e a complexidade.
18

Para que um projeto transdisciplinar tome forma é necessário


que se considere o problema em questão a partir de vários
níveis de realidade possíveis e não apenas a partir de um, como
usualmente acontece. Segundo, que não se espere soluções em
termos de verdadeiro ou falso, mas que se usem novas lógicas
onde, por exemplo, a solução só possa ser encontrada pela
conciliação temporária dos contraditórios [a lógica do terceiro
incluído]. Terceiro, que se reconheça a complexidade do
problema, isto é, que se utilize o pensamento complexo que
admite a incerteza, reconhece a impossibilidade de reduzir o
problema a partes simples assim como atribui coerência à
peculiaridade deste mundo multidimensional e multirreferencial
(NICOLESCU, OP. CIT., P.3)

1.4 Programa Saúde da Família: um campo de práticas transdisciplinares?

O movimento pela reforma sanitária brasileira teve seu momento

marcante na VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, em

Brasília. Foram propostas nesta Conferência as diretrizes da reforma, dentre

elas: o conceito ampliado de saúde, a implantação do Sistema Único de

Saúde (SUS) e a participação popular. Os conteúdos da constituição federal,

das leis orgânicas municipais e a legislação ordinária do SUS reforçaram

princípios cruciais da assistência à saúde, como a integralidade e a

universalização da assistência (PAIM, 2003).

Abria-se, então, espaço para a implantação de estratégias de

reorientação da atenção básica á saúde, como o Programa de Agentes

Comunitários de Saúde (PACS), implantado em 1991, e o Programa Saúde

da Família (PSF), implantado em 1994.

O PSF reconhece a família como núcleo de suas ações, e a promoção

em saúde como o pilar de suas práticas, e vem alcançando bons resultados,

refletidos na melhora dos índices de saúde da população (BRASIL, 2001).


19

De acordo com Alves (2004), o êxito verificado nesta primeira década de

implantação do programa advém do fato de que ele surgiu para consolidar as

diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), a saber: a universalidade de

acesso, a integralidade da assistência, eqüidade como princípio de justiça

social, serviços compondo uma rede hierarquizada e regionalizada e

descentralização da gestão.

O trabalho multiprofissional é uma marca do PSF. Costa e Carbone

(2004) ressaltam que da equipe de profissionais que o compõe surge a

responsabilidade de conduzir a assistência à saúde, tendo a atenção básica

como princípio orientador das práticas, representando a porta de entrada do

sistema, e atuando junto à população adscrita em seu território de

abrangência.

Apesar de, teoricamente, esta equipe se interagir numa perspectiva

interdisciplinar, o que talvez seja um dos entraves do programa, é a

execução fragmentada das ações, tanto as atribuições individuais,

concernentes a cada categoria profissional, até as intervenções que

demandam decisões e planejamento em equipe, não comportando, pois,

ações isoladas (ALVES, 2004).

Tendo em vista uma prática realmente integral em saúde, obedecendo ao

que rege a constituição na Lei 8080/90, no seu capítulo II art. 7, hoje se

estuda uma abordagem transdisciplinar no trabalho em equipe. De acordo

com Chaves (1998), essa visão de trabalho surgiu devido ao reconhecimento

do caráter multidimensional e complexo do setor saúde. Há, pois, a

necessidade de se progredir de uma assistência de amplitude fragmentada,

reducionista, para uma ação ampliada.


20

Já não se fala mais em medicina preventiva e curativa, e sim em


medicina integral. Já não se fala em atenção primária em saúde,
de maneira isolada, e sim em sistemas hierarquizados e
regionalizados de saúde(...). A abordagem transdisciplinar no
trabalho em equipe (...) representa a construção de um novo
paradigma na atenção à saúde, aglutinador, que permita unir
forças dispersas, religar partes que nunca deveriam ter sido
separadas, porém mantendo sua identidade própria
(CHAVES,op. cit, p. 3).

A 8ª Conferência Nacional de Saúde elucidou, como já citado, um

conceito ampliado de saúde, acentuando a relevância de vários

determinantes que teriam influência no processo saúde-doença. Diz a Lei

8080/90:

Art 3º - A saúde tem como fatores determinantes e


condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o
saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a
educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços
essenciais(...)

O processo saúde-doença foi assim reconhecido como resultante de

fatores sócio-econômicos e culturais que incidem numa determinada

população. Até então a saúde no Brasil não era analisada em seu caráter

multidimensional e complexo. E é justamente a ação transdisciplinar que

permite avançar nesse paradigma. Analisar a situação de saúde de uma

comunidade, e, por conseguinte, traçar o planejamento das ações de modo a

se melhorar sua qualidade de vida implica em reconhecer os problemas nos

seus diversos níveis de realidade, como também é preconizado na

abordagem transdisciplinar.

Destacando a complexidade que compõe o setor, Silva e Waissmann

(2005, p. 240) relatam que


21

a constituição brasileira, ao tutelar esta saúde ampla e


visceralmente múltipla, não apenas reconhece a complexidade
do tema, mas coloca o Estado como porta-voz nesse espaço,
por definição, interdisciplinar. O entendimento e a abordagem
interdisciplinar em matéria de saúde pelo Estado (...) implica em
criar mais uma disciplina no campo normativo, reconhecendo
elementos que devem ser agregados para sua formação.
Entretanto, há de se questionar se essa unicidade, dada a
amplitude da definição proposta, pode ser alcançada ou se,
encarada como transdisciplinar pelo reconhecimento da
insuficiência de uma única disciplina para seu esgotamento, a
produção de conhecimento não seria mais eficaz levando em
conta os objetivos propostos na Constituição Brasileira de 1988.

A multi e a pluridisciplinaridade se revelaram propostas muito tênues para

lidar com a rede de eventos envolvidos na saúde individual e comunitária.

Ambas possuem sua parcela de contribuição em prol da confluência do

saber, mas apresentam restrições quando se trata de propostas de atuação

em equipe na área da saúde.

A interdisciplinaridade, que rege as interações profissionais no PSF, não

pode ser considerada como uma visão fracassada e nem inerte. Como

proposta de integração disciplinar, é válida porque também visa estabelecer

conexões e consórcios entre diferentes visões e realidades. Mas sua

finalidade fica ainda restrita ao campo disciplinar, uma vez que não

preconiza a unidade de conhecimento. Sua inserção no PSF foi válida, mas

é visivelmente prejudicada pelo corporativismo e individualismo. Para que

haja uma assistência realmente integral à saúde é necessário, antes de tudo,

uma interação real e sem privilégio de um saber sobre o outro.

A transdisciplinaridade neste sentido representa uma experiência

desafiadora que inclui, no âmbito do trabalho em equipe, a tolerância, o

respeito, a superação das verticalizações de poder para uma situação de

maior equilíbrio entre as práticas e ações profissionais. Isso não quer dizer
22

que seriam abolidas as diferenças técnicas referentes a cada categoria. O

que se pretende, na verdade, é a construção de um plano assistencial que

contemple a integralidade e a complexidade do processo saúde-doença.

Neste sentido, para a implantação do trabalho em equipe numa perspectiva

transdisciplinar, são bem-vindas concepções e práticas que estimulem uma

real interação entre todos os seus constituintes, como reuniões de

planejamento e outras ações onde todos os membros da equipe possam

contribuir com sua criatividade e experiência própria na atenção ao usuário.

A criação de um prontuário único, transdisciplinar, seria também um avanço

na integração do saber e das ações dentro do PSF.

A transdisciplinaridade, como exposta acima, não representa uma “moda”

e nem uma nova “filosofia”, mas sim uma proposta de orientação das

relações profissionais em prol de uma assistência holística e integral, e não

mais reducionista e fragmentada, como aquela em que o paciente é

literalmente “empurrado” de setor em setor, recebendo pareceres individuais

de cada profissional, para então ser liberado.

2 OBJETIVO GERAL
Elucidar a concepção sobre a abordagem transdisciplinar e sua aplicação

no âmbito das equipes do Programa Saúde da Família.

3 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Identificar as concepções sobre transdisciplinaridade vigentes entre os

profissionais de saúde nas unidades 3 e 4 do PSF de Unaí-MG.

Caracterizar as práticas realizadas nas referidas equipes, relacionando-as

à abordagem transdisciplinar.
23

4 MÉTODO
4.1 - Coleta de dados
Estudo de caso articulando métodos quantitativos e qualitativos, por

meio da produção de dados descritivos que orientem a compreensão das

práticas transdisciplinares realizadas pelas equipes do PSF, objeto deste

estudo. A aplicação de metodologias qualitativas implica o contato direto do

pesquisador com os sujeitos de pesquisa, num processo de interação que

permite acessar a situação ou objeto a ser estudado e as concepções que os

atores sociais fazem desse objeto (YIN 2002; NEVES, 1996; ASSIS et al, 1998).

A pesquisa qualitativa possibilita, pois, entender uma situação dentro da

ótica dos participantes do estudo, permitindo também uma interpretação peculiar

acerca do fenômeno estudado, o que se torna essencial para um tema tão

pouco explorado pela literatura vigente, como a aplicação da

transdisciplinaridade no trabalho em equipes de saúde.

A fase de coleta de dados abrangeu a técnica de observação direta e a

realização de uma entrevista semi-estruturada com roteiro definido 1que foi

aplicado a todos os profissionais que compõem as Unidades de Saúde da

Família de números 3 e 4 do município de Unaí, em Minas Gerais. O referido

roteiro foi desenvolvido por Costa (2002), que estudou a interdisciplinaridade em

equipes de saúde, tendo sido adaptado para esta pesquisa. As entrevistas

foram realizadas na própria unidade, durante o mês de junho de 2006. A parte

analítica do trabalho utilizou elementos compreensivos dos discursos dos

informantes por meio da análise das principais categorias sobre

transdisciplinaridade presentes nas entrevistas.

1
O roteiro de entrevista está disponível em anexo
24

Participaram da entrevista, de forma espontânea e consentida, todos os

profissionais que atuam nas equipes das unidades 3 e 4 do PSF do município

de Unaí , sendo 5 profissionais de nível universitário (1 enfermeira, 2 médicos, 2

dentistas), 6 profissionais de nível médio (4 técnicos de enfermagem e 2

auxiliares de consultório dentário) e 12 de nível básico (12 agentes

comunitárias de saúde), que fazem parte das duas equipes incluídas no estudo,

num total de 23 participantes. Para se evitar interferências, os autores do

trabalho (2 dentistas e 1 enfermeira), que também integram as equipes

mencionadas, não responderam à entrevista.

A equipe de saúde bucal conta com seis profissionais, sendo quatro

cirurgiões-dentistas e duas auxiliares de consultório dentário. Ela ainda não foi

habilitada junto ao PSF das unidades estudadas, habilitação esta que está em

vias de concretização. A equipe foi incluída no estudo junto às USF porque

atende a população adstrita às unidades, abrangendo, pois, o mesmo território.

Previamente às entrevistas, respeitando os aspectos éticos, conforme

Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, o projeto de pesquisa foi

submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Brasília – UnB ,

em 29 de junho de 2006 e aprovado. Os questionários foram preenchidos à mão

por cada um dos participantes, e então numerados em ordem aleatória (E1 a

E23).

Não foram encontradas dificuldades na execução da pesquisa; todos os

profissionais das equipes concordaram com o estudo , que contou com o apoio

da coordenadora do PSF do município, além do Secretário Municipal de Saúde.


25

4.2 Caracterização da região do estudo

O município de Unaí, emancipou-se politicamente em 1.943, situando-se

na região noroeste do Estado de Minas Gerais, ocupando uma área de 8.464

Km², constituindo-se num dos maiores municípios do Estado em termos de

extensão territorial.

O último Censo Demográfico divulgado pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), referente ao município, apontou uma população

de 70.033 habitantes, representando 0,39% da população do estado de Minas

Gerais.

Unaí possui um extenso território, com economia voltada para o

agronegócio, com destaque para a produção de cereais, constituindo-se no

segundo maior Produto Interno Bruto agrícola do Estado, e criação de rebanhos

bovino, suíno e eqüino. Sua produção de feijão é considerada a maior do Brasil,

sendo também o primeiro produtor do Estado de milho e soja, apresentando a

maior área irrigada da América Latina, com 35 mil hectares. Destaca-se também

a produção de leite, o que faz do município a segunda maior bacia leiteira do

Estado, com 200 mil litros/dia. (PREFEITURA MUNICIPAL DE UNAÍ – MG,

2004).

O município possui em funcionamento sete unidades do Programa de

Saúde da Família, cobrindo com a atenção básica cerca de 20% de sua

população. A baixa porcentagem de cobertura do PSF reflete a dificuldade do

município em expandir a assistência à saúde em termos de atenção básica, em

termos devido ao fato de se constituir em referência em serviços de média

complexidade para os municípios vizinhos, o que acarreta o dispêndio de

recursos para custeio de serviços de maior complexidade.


26

Os bairros Iúna, Canaã, Cidade Nova e Lourdes, que constituem a área

de atuação das Unidades de Saúde da Família (USF) incluídas nesse estudo,

surgiram a partir do êxodo de famílias dos distritos rurais do município para a

cidade, no início da década de 1980. Os primeiros moradores alojaram-se às

margens da rodovia de acesso ao Distrito Federal, em moradias improvisadas.

Com o apoio de setores da Igreja Católica, a comunidade incipiente buscou,

junto à administração municipal, a implantação da infra-estrutura básica.

Atualmente, a região conta com duas Unidades de Saúde da Família, as

de número 3 e 4 do município de Unaí, implantadas no ano 2000, além de um

posto de saúde que atende à população do bairro Novo Horizonte, adjacente à

região incluída no estudo.

Os bairros citados apresentam problemas estruturais como altos índices

de desemprego, criminalidade e violência. Relatórios da Polícia Militar,

abrangendo as ocorrências realizadas de junho de 2005 a junho de 2006

apontaram que a região, totalizados os dados do município, responde por cerca

de 29% dos casos de lesão corporal, 27% dos casos de agressão, 27% das

apreensões por porte ilegal de armas e 20% dos casos de roubo, citando

apenas quatro dos eventos perigosos ocorridos no decorrer de um ano, dados

que propiciaram a instalação de uma unidade policial no local, em vias de início

de atividades.

A região, pela vulnerabilidade social que apresenta, foi também

selecionada para a instalação de uma das duas unidades do Centro de

Referência em Assistência Social (CRAS) no município. O CRAS constitui-se

num programa do governo federal em parceria com a administração municipal,

visando a assistência integral às famílias cadastradas, através de orientação


27

psicológica, oficinas com mulheres e adolescentes, e busca de apoio

intersetorial para a resolução dos problemas que mais afetam as famílias.

Dentre os projetos em vias de concretização no CRAS da região, destacam-se a

abertura de uma padaria comunitária e o desenvolvimento de uma oficina de

reciclagem, aproveitando os moradores que trabalhavam no lixão, que fica

próximo aos bairros citados.

Vale ressaltar a melhoria da qualidade de vida que sua população tem

experimentado nos últimos anos, com a implantação de políticas e programas

de inclusão social, além de uma ostensiva vigilância por parte da segurança

pública, o que minimiza, mas não elimina os problemas que acompanham esta

região desde a sua formação.


28

5 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS

As concepções sobre transdisciplinaridade que vigoram no âmbito das

unidades do Programa Saúde da Família estudadas foram analisadas a partir do

arcabouço teórico que se desenvolve a seguir:

5.1Aspectos conceituais

Segundo Yin (2002), a análise de um estudo de caso como o aqui

empreendido enfatiza as proposições de caráter teórico. Seguindo esta

trajetória, o foco analítico do presente trabalho se dá em torno da

transdisciplinaridade enquanto abordagem de trabalho em equipes do Programa

Saúde da Família, tomando-se como referência as atividades cotidianas de duas

unidades do programa do município de Unaí (MG). Entender como se dá o

projeto transdisciplinar, e o porquê de sua implantação numa equipe de saúde

requer o reconhecimento do referencial teórico acerca desta abordagem de

integração disciplinar.

Utilizando o mesmo raciocínio de Saupe et al (2005), ao abordar a

transdisciplinaridade como princípio orientador do processo de trabalho numa

equipe de saúde, está-se referindo a uma relação de articulação entre as

diferentes categorias profissionais, considerando cada profissão como um

distinto coletivo de pensamento, com suas regras e formações específicas.

Barasab Nicolescu, físico romeno e um dos grandes pesquisadores do

tema na atualidade, logrou êxito, por meio da aplicação de princípios da física

quântica, ao desenvolver um marco conceitual referente à transdisciplinaridade.

O autor apresenta os pilares da pesquisa transdisciplinar, a saber: os níveis de

realidade, a lógica do terceiro termo incluso e a complexidade, elementos que


29

foram bem expostos em um Congresso Internacional realizado em Locarno,

Suíça, (1997, apud Oliveira, 2000) .

O primeiro deles, representado pelos “níveis de realidade” compreende

um conjunto de sistemas que são regidos sob leis específicas. Dois níveis de

realidade são diferentes se, ao se transpor um nível para outro, há uma ruptura

nas leis e nos conceitos que as fundamentam.

Quando se fala em “vários níveis de realidade” como um dos pontos-

chave da pesquisa transdisciplinar, trata-se aqui de observar a realidade de

maneira multidimensional e multirreferencial, em que o nível superior não exclui

o inferior.

Como segundo elemento constituinte da transdisciplinaridade, a lógica

do terceiro termo incluso implica em não mais restringir a solução de uma

problemática nos termos de "verdadeiro" ou "falso" presentes na lógica binária,

mas lançar mão de novas lógicas, de forma que a solução só possa ser

encontrada pela conciliação temporária dos contraditórios, fazendo com que

eles se liguem a um nível de realidade diferente daquele no qual esses

contraditórios se expressam.

Considerando dois termos – A e não-A -, um terceiro termo – T – pode


superar uma real contradição entre os dois primeiros temporariamente.
Graficamente isto pode ser representado como um triângulo que tem
dois vértices num mesmo nível da realidade, unidos por um terceiro
que se situa em outro nível da realidade. Assim, o quantum unifica
onda e corpúsculo, em princípio contraditórios (CONGRESSO DE
LOCARNO apud OLIVEIRA, 2000, p. 7)

Finalmente, a complexidade reconhece a não-possibilidade da

fragmentação de um determinado problema em partes simples, fundamentais.

Muda-se, desta forma, o sistema de referência diante dos fatos e situações,


30

sistema este que deixa de ser simplista, reducionista, para se tornar, como já

mencionado anteriormente, multidimensional e multirreferencial.

Morin (1999), abordando a necessidade de uma reforma de

pensamento, relata que os sistemas de educação na atualidade, ao dar ênfase à

fragmentação do conhecimento em múltiplas disciplinas, privilegiam a separação

quando deveriam promover a contextualização dos problemas e elementos,

cada vez mais globalizados, que compõem a sociedade moderna.

O mesmo autor lembra que a realidade é multidimensional, porém cada

vez mais suas dimensões são estudadas separadamente; a cultura científica

privilegia a especialização, compartimentando ainda mais o conhecimento.

Nesse sentido, o autor afirma que (op. cit, p. 21):

O pensamento complexo é, portanto, essencialmente aquele que trata


com a incerteza e consegue conceber a organização. Apto a unir,
contratualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo a reconhecer o
singular, o individual e o concreto.

A pertinência da transdisciplinaridade permite a aplicação do mesmo

neste estudo. Buscou-se, para tanto, a aplicação de seus elementos no

processo de trabalho das equipes do PSF, numa tentativa de se propor soluções

mais eficientes frente à complexidade que envolve o setor saúde.

O Programa Saúde da Família foi implantado com a perspectiva de se

propor uma forma de assistência alternativa, contra-hegemônica, oferecendo

prioritariamente ações promocionais e preventivas, contrabalançadas com as

ações curativas e reabilitadoras.

A interdisciplinaridade foi invocada no contexto do programa justamente

para superar o trabalho fragmentado, a objetivização do usuário e o enfoque

biologicista do processo saúde-doença (ALVES, 2005). Vários autores


31

(FORTUNA, 2005; PAIM apud ALVES, 2005; GALHEIGO, 1999; ALMEIDA

FILHO, 1997), porém, ressaltam que a estratégia do programa não tem se

mostrado eficaz para a reorganização dos modelos assistenciais vigentes no

Brasil.

Corporativismo profissional, projetos autônomos de assistência,

predomínio de um saber sobre os demais, relações definidas a partir de um nível

hierárquico superior representam elementos que colocam em questão a

pertinência da interdisciplinaridade enquanto fator de aproximação das equipes

do PSF e como abordagem de trabalho que reoriente o modelo de atenção à

saúde vigente no Brasil.

A transdisciplinaridade tem sido elucidada, desde então, como proposta

de trabalho em equipe, instaurando um diálogo entre os diferentes campos

disciplinares, propondo uma comunicação horizontal, sem predomínio de um

saber sobre o outro, gerando novos dispositivos capazes de lidar com a

complexidade do processo saúde-doença-cuidado (IRIBARRY, 2003; ALMEIDA

FILHO, 1997).

5.2 Abordagem transdisciplinar no trabalho em equipes de PSF

A implantação do Programa Saúde da Família no Brasil foi acertada em

vários pontos: a atenção básica tem se reestruturado; o acesso aos serviços de

saúde foi ampliado, e, finalmente, os indicadores de saúde têm experimentado

uma sensível melhora (BRASIL, 2001). É preciso estar atento, porém, aos

fatores limitantes do programa que o podem impedir de se estabelecer como o

elemento que consolide os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS),


32

principalmente no que tange à integralidade da assistência, tão preconizada e

pretendida pelos mentores do projeto.

O PSF, idealmente, foi elaborado para funcionar com uma equipe

composta, no mínimo, por um médico, um enfermeiro, um técnico de

enfermagem e quatro agentes comunitários de saúde, trabalhando numa

abordagem interdisciplinar, visando o atendimento integral ao usuário,

atendendo assim a todas as suas necessidades de atenção básica à saúde. A

equipe de saúde bucal aos poucos vai sendo inserida definitivamente nessa

estratégia, e o desafio de se buscar uma articulação entre campos disciplinares

tão diversificados se intensifica.

Pode-se pensar a inter e a transdisciplinaridade no PSF como termos

próximos, muitas vezes compreendidos como correlatos, mas convém lembrar

que são abordagens distintas, com a primeira (interdisciplinaridade) já sendo

experimentada desde o início do programa, e a segunda ainda em fase

embrionária, de reflexão e construção de seu aparato teórico-prático.

As unidades 3 e 4 do PSF de Unaí, abordadas neste estudo, prestam

assistência a famílias submetidas à ação de amplos determinantes do processo

saúde-doença. Os quatro bairros assistidos são contemplados pelo saneamento

básico e água tratada, possuem grande parte de ruas calçadas, mas sua

população tem sofrido, historicamente, com os problemas advindos do

desemprego, da baixa renda, da violência, do tráfico de drogas e da falta de

opções de lazer e cultura. Reconhece-se, pois , que a assistência a estas

famílias implica em reconhecer essa rede complexa de fatores determinantes à

saúde, e ao mesmo tempo compreender o usuário dos serviços como um ser

bio-psico-social, exigindo dos profissionais responsáveis a superação dos


33

limites disciplinares que sua categoria impõe. Buss (2000, p.5), ao tratar da

complexidade do setor saúde, mencionou que:

Partindo de uma concepção ampla do processo saúde-doença e de


seus determinantes, [a promoção da saúde] propõe a articulação de
saberes técnicos e populares, e a mobilização de recursos
institucionais e comunitários, públicos e privados, para seu
enfrentamento e resolução

A implementação das Unidades 3 e 4 do PSF no município de Unaí

representou uma vitória para a população local, que pôde então ser

contemplada com uma assistência mais direta, em termos de atenção básica à

saúde. A busca ativa de casos, a criação de grupos para educação em saúde e

o atendimento multiprofissional têm possibilitado um impacto na vida das

famílias assistidas pelo programa, com resultados promissores para a geração

vindoura.

Acredita-se que o trabalho realizado nas duas unidades necessita ser

reavaliado enquanto agente transformador da realidade local. Elementos

facilmente detectáveis no cotidiano das equipes estudadas são: comunicação

deficiente, ausência de planos conjuntos de assistência e relações

estabelecidas a partir de um nível hierárquico superior. Um caso peculiar é o do

setor de odontologia, que trilha uma prática autônoma, pois não faz parte do

PSF, atuando, porém, no mesmo espaço físico e atendendo a população

adstrita às unidades. Como bem explicitou Fortuna et al (2003, p.4):

Assim, a queixa é decodificada e transformada numa conduta


normalmente medicalizante, ou seja: são prescritos remédios e
atitudes individuais descontextualizadas que nem sempre são
seguidas e nem sempre impactam positivamente na saúde daquela
pessoa ou daquelas pessoas que vivem e moram na área onde a
Unidade de Saúde se propõe atuar.

É necessário se pensar em abordagens de trabalho que integrem os

profissionais dessas equipes, capacitando-os para adquirir uma visão mais


34

abrangente dos problemas de saúde, promovendo ações mais efetivas,

gerando novos dispositivos, trocas de informações e a construção de um plano

assistencial comum, em que os profissionais possam se ajudar mutuamente em

suas dificuldades.

A construção de um projeto transdisciplinar em saúde, neste sentido,

representa um meio apropriado para confluir as práticas em prol de uma

assistência integral, e não mais fragmentada. Iribarry (2003, p. 10) pontuou que

“uma equipe será transdisciplinar quando sua reunião congregar diversas

especialidades com a finalidade de uma cooperação entre elas sem que uma

coordenação se estabeleça a partir de um lugar fixo”.

Isto não implica, segundo o autor, em considerar como nocivas as

lideranças e chefias da equipe, mas sim que suas posições devem ser

questionadas e que os responsáveis pela gerência dos serviços estimulem o

debate e a comunicação entre todos os membros da equipe, e destes com a

comunidade. Como bem salientou Alves (2005, p. 11):

A partir do diálogo e intercâmbio de saberes técnico-científicos e


populares, profissionais e usuários podem construir de forma
compartilhada um saber sobre o processo saúde-doença. Este
compromisso e vinculação com os usuários possibilita o fortalecimento
da confiança nos serviços. Por esta circunstância, o modelo dialógico
tem sido associado a mudanças duradouras de hábitos e de
comportamentos para a saúde.

A construção de um projeto transdisciplinar visando a integralidade da

assistência deve aproveitar os momentos de reunião da equipe para que o

exercício da comunicação comece a moldar a nova abordagem de trabalho.

Quando envolta numa situação-problema, a ser refletida, os diferentes

níveis de realidade acerca da questão são evocados para que o objeto de

estudo sofra a ação de múltiplos olhares que venham a confluir para uma

solução compartilhada (GALHEIGO, 1999)..


35

Iribarry (2003), ao expor suas idéias a respeito da transdisciplinaridade,

discorre que, nas reuniões de equipe, um problema não resolvido em uma área

deve ser encaminhado a um outro campo de conhecimento, avançando as

relações entre os profissionais, estabelecendo um diálogo com coordenação

descentralizada e decisões não verticalizadas, instaurando o respeito aos

diferentes níveis de realidade, que são regidos por lógicas diferentes (porque

pertencentes a categorias profissionais diversas).

O autor ainda sugere que o trabalho em equipe numa perspectiva

transdisciplinar deve fazer com que cada membro da equipe freqüente

continuamente o campo de conhecimento de seus colegas, evitando jargões

que cada disciplina institui em seu saber. Com este intercâmbio entre os

pesquisadores, espera-se que a tomada de decisões seja feita de maneira

compartilhada.

Para construir essa axiomática compartilhada seriam aproveitados os

momentos de congraçamento da equipe, como as reuniões de planejamento, os

grupos de estudo e os grupos de educação em saúde, e as soluções

compartilhadas, advindas destes encontros, seriam desenvolvidas nas ações de

saúde cotidianas, como bem expressa Alves (2005, p. 5):

Uma situação ilustrativa é a de um atendimento a um paciente com


crise hipertensiva, que além da administração da medicação
necessária durante uma consulta médica seria orientado quanto à
importância de uma alimentação hipossódica e de exercícios físicos
regulares. Assistência e educação para saúde durante a consulta
ambulatorial, sem que o paciente espere o momento de encontro do
grupo dos hipertensos numa determinada data e horário para receber
as referidas orientações: isto expressa integralidade da assistência.

Desta forma, depreende-se que o agir transdisciplinar no trabalho em

equipe do PSF implica numa atitude de tolerância e abertura entre seus

membros, aceitando o inesperado e o imprevisível; requer humildade e


36

disponibilidade de cada profissional, pois trata-se do reconhecimento de visões

múltiplas frente a um mesmo objeto (situações-problema). Finalmente, é

necessária a cooperação descentralizada, em que todos os profissionais ser

reúnam para buscar soluções de maneira compartilhada (IRRIBARY, 2003;

GALHEIGO, 1999).

Os dados empíricos produzidos nas unidades 3 e 4 do PSF em Unaí

(MG) buscaram caracterizar o processo de trabalho nestas equipes, suas

proximidades ou distanciamento com a abordagem transdisciplinar, e suas

perspectivas de implantação.

5.3 Identificação e formação

Analisando o perfil dos profissionais quanto à faixa etária e formação, a

equipe é composta por 19 membros com faixa etária até 40 anos, com

predominância do sexo feminino, com todos os entrevistados possuindo como

escolaridade mínima o segundo grau. A figura 5 mostra que os membros das

equipes estudadas possuem, em sua maioria, até dez anos de exercício

profissional A categoria com maior número de profissionais presentes é a de

agente comunitário de saúde (doze), seguida dos técnicos de enfermagem

(quatro). As demais categorias possuem uma proporção equânime de

profissionais.
37
13 90%
83%
14 20 a 30 anos
12 80%
30 a 40 anos 70%
10
8 40 a 50 anos 60%

6 4 50% Masculino
4 Mais de 50
anos 40% Feminino
4 2
2 30%
17%
0 20%

20 a 30 a 40 a Mais 10%
30 40 50 de 0%
anos anos anos 50 Masculino Feminino
anos

Figuras 1 e 2: Idade e sexo dos entrevistados

Agente Comunitário de Saúde


Auxiliar de Consultório Dentário
Cirugião-dentista
Médico
Enfermeiro 4% Pós-
22%
Técnico de enfermagem graduação
4 Superior
1 Completo
74%
2 2º Grau

2 12

Figuras 3 e 4: Profissão e escolaridade

14%
1 a 5 anos
9%
5 a 10 anos
10 a 15 anos
18% 59% + de 15 anos

Figura 5- Tempo de exercício profissional


38

Cooperação e dinamismo são necessários na construção de uma nova

abordagem de trabalho no PSF. Espera-se que uma equipe essencialmente

jovem, como as duas abordadas neste estudo, estejam abertas à aplicação de

novas modalidades de assistência como o projeto transdisciplinar.

Quando questionados sobre a participação em cursos que abordassem

a atuação multiprofissional, 30% dos profissionais responderam

afirmativamente. Alguns cursos citados foram: “treinamento de farmácia básica”,

“imunização”, “especialização em saúde coletiva”, “curso técnico de

enfermagem”, “clínica médica”, “curso introdutório do PSF”, dentre outros.

30%
Sim
Não

70%

Figura 6 - Participação em processos de formação


Multiprofissional nos últimos 5 anos.

Dos que responderam negativamente, a razão apontada para a não

participação em cursos dessa natureza foi a “falta de oportunidade” ou por “não

terem sido convidados”.

O PSF é composto de uma equipe multiprofissional, com competências

comuns e específicas, que devem confluir para a mesma finalidade, que


39

representa a resolução dos problemas da atenção básica em saúde das famílias

adstritas ao seu território de abrangência.

O Ministério da Saúde (Brasil, 2001) descreve as atribuições específicas

a cada profissional da equipe, mas também ressalta aquelas que são comuns a

todos os membros:

 Atribuições relativas ao planejamento das ações: conhecimento dos

fatores determinantes do processo saúde-doença, em nível individual e

coletivo, estabelecer prioridades, traçar estratégias de ação, conhecer o

perfil epidemiológico da população adstrita ao seu território de

abrangência.

 Atribuições relativas à promoção e vigilância à saúde: conhecimento dos

fatores que determinam a qualidade de vida da comunidade, a busca de

apoio intersetorial na solução dos problemas de saúde das famílias e o

estímulo à participação popular no planejamento, execução e avaliação

das ações da USF.

 Atribuições relativas ao trabalho em equipe: compartilhar conhecimentos

e informações.

 Atribuições relativas à abordagem integral da família: compreender a

família de forma integral e sistêmica, identificar a relação da família com a

comunidade, identificar processos de violência no seio familiar e abordá-

los de forma integral, de acordo com os preceitos éticos existentes.

Como já mencionado, o respeito às bases disciplinares específicas é

uma das características da interdisciplinaridade (SAUPE et al, 2005) e, por

conseguinte, da transdisciplinaridade. Não se propõe, com a abordagem

transdisciplinar no PSF, a transgressão às competências profissionais


40

específicas, mas sim a construção de um eixo comum que conduza o processo

de trabalho de toda a equipe.

O trânsito entre os diferentes níveis de realidade, relativos a cada ator

na equipe, redundaria em uma axiomática compartilhada, propiciando uma

atenção ao usuário de forma mais holista e integral (NICOLESCU, 2001;

ALMEIDA FILHO, 1997).

A construção do aparato teórico desta nova abordagem de trabalho em

equipe requer a capacitação e intenso treinamento de todos os profissionais,

com um currículo que abranja questões como a comunicação interpessoal, as

reciprocidades e interações entre os conhecimentos e técnicas, a

interdependência entre os diferentes campos de saber, e todos os pontos que

reforcem a necessidade de se promover consórcios e alianças entre os

membros da equipe.

Tabela 1 - Existência e participação em grupos de estudo nas unidades


estudadas
Existência de grupos de estudo Participação em grupos de estudo
Sim 17 17
Não 6 6

Dos 23 profissionais entrevistados, 17 afirmaram que existem grupos de

estudo nas unidades estudadas, e que também participam desses grupos, que

abordam como temática as situações-problema mais comumente vivenciados

pelas equipes, como a assistência aos grupos prioritários (diabéticos,

hipertensos, mulheres, crianças e idosos), questões como a humanização e

acolhimento, dentre outros.


41

A elaboração de um grupo de estudos numa Unidade de Saúde da

Família representaria um dos pontos chaves na construção de uma prática

transdisciplinar. Uma determinada situação-problema, então, seria submetida à

análise de múltiplos “olhares”, concernentes a cada categoria profissional.

Esses diferentes “olhares” apontam o que Nicolescu (2001) categorizou

como um dos pilares da transdisciplinaridade: os diferentes níveis de realidade.

A articulação desses níveis comporia então uma estrutura complexa,

multidimensional e multirreferencial.

A comunicação entre os agentes dos discursos, como mencionado por

Almeida Filho (1997), representaria o que Nicolescu (2001) denominou de

terceiro termo incluso, exercendo o papel de “conciliação temporária dos

contraditórios”, uma vez que as categorias profissionais presentes no PSF

expressam campos de saber específicos e de natureza interparadigmática.

Da mesma forma, conforme relata Morin apud Paul (2000, p.10), a

transdisciplinaridade emerge da necessidade de um método que detecte as

“ligações, articulações, solidariedades, imbricações, interdependências,

complexidades”.

Almeida Filho (1997, p.13) retrata o perfil desses novos “operadores

transdisciplinares da ciência”:

Serão (ou são porque de fato já estão por aí) mutantes metodológicos,
sujeitos prontos para o trânsito interdisciplinar, transversais, capazes
de transpassar fronteiras, à vontade nos diferentes campos de
transformação, agentes transformadores e transformantes. A formação
desses agentes será essencialmente ‘anfíbia’, com etapas sucessivas
de treinamento-socialização-enculturação em distintos campos
científicos. (...) Não se trata obviamente de ecletismo ou hibridação, na
medida em que (para continuar com metáforas biológicas)
conhecemos largamente a infertilidade dos híbridos.
42

O projeto transdisciplinar em saúde não se trata, pois, da criação de

uma macrodisciplina e sim a formação de uma equipe capaz de “falar variadas

línguas, sem as confundir” (MACEDO apud GALHEIGO, 1999).

1.4 Trabalho na equipe do PSF


A maioria dos profissionais (19) possui até 5 anos de atividades nas

unidades estudadas. Como se vê, em termos de formação, é uma equipe em

fase “embrionária”, o que significa que a construção de um projeto

transdisciplinar ainda demandaria um bom tempo até que se concretizasse.

Concurso
Menos de
1 ano
Público
22%
17% 22% Indicação
1a5
anos 9%
Mais de 5 69%
Outros
61% anos

Figura 7- Tempo de trabalho nas unidades Figura 8 –Forma de ingresso na equipe


estudadas

A principal forma de ingresso nas equipes foi a seleção pública (16) ,

seguida por concurso (5) e indicação (2).

No PSF os contratos, geralmente, são temporários, com a possibilidade

de renovação de seus recursos humanos com o fim do mandato municipal. Este

fato impede a continuidade necessária ao amadurecimento dessas novas

estratégias de ação.

Cabe aos gestores a consciência necessária para o estabelecimento da

solidez dos vínculos empregatícios dentro do programa, o que resultaria na


43

diminuição da rotatividade e a possibilidade de se implantar estratégias como a

prática transdisciplinar.

A maioria dos entrevistados (78%) afirma que participaram de

treinamento antes do ingresso na equipe. O Ministério da Saúde (BRASIL, 2001)

recomenda que o treinamento introdutório das equipes das Unidades de Saúde

da Família possa capacitar os profissionais para analisar o contexto da

comunidade adstrita ao seu território de abrangência, compreender os fatores

de risco a que as famílias estão submetidas, a aprendizagem acerca dos

indicadores de saúde, em especial àqueles pactuados para a Atenção Básica e

produzidos pelo Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB).

22%
S im
N ão
78%

Figura 9 – Participação em treinamento


antes de ingressar na equipe do PSF

O Ministério da Saúde aponta ainda outras informações importantes no

treinamento das equipes do PSF, como o conhecimento acerca dos princípios

operacionais do programa, como a definição territorial/adstrição da clientela, a

noção de família como núcleo da assistência, o trabalho em equipe, as noções

de que as ações devem se caracterizar pela resolutividade (capacidade de

solucionar os problemas de saúde da comunidade) e intersetorialidade (apoio de

outros setores), e o estímulo à participação popular.


44

A capacitação dos recursos humanos do PSF de Unaí tem ficado a

cargo da coordenação do programa, sendo que o município experimenta a

construção de um Pólo de Capacitação, vinculada a algumas instituições de

ensino superior, como a Universidade de Brasília (UnB), além da parceria com a

Secretaria Estadual de Saúde, que por meio da Gerência Regional de Saúde

(GRS), tem sido primordial para o desenvolvimento de estratégias de saúde da

família.

A curto prazo, este Pólo de Capacitação que se encontra em fase de

consolidação no município tem logrado êxito em ofertar aos profissionais do

programa cursos de atualização referentes às abordagens coletiva e clínica

individuais, com ênfase nas áreas da atenção básica.

A médio e longo prazo espera-se que ocorra no município a implantação

de programas de educação continuada, para que os recursos humanos possam

estar cada vez mais aptos ao trabalho multiprofissional, possibilitando, inclusive,

a estruturação da abordagem transdisciplinar no trabalho em equipes do PSF

em bases mais sólidas.

Todos os entrevistados responderam que existe trabalho em equipe nas

unidades estudadas. Segundo Peduzzi (2001), o trabalho em equipe é proposto

como estratégia para se enfrentar a assistência intensamente especializada

vigente na área da saúde.

Privilegiando uma prática comunicativa, com a busca de consensos, os

profissionais podem construir um projeto comum que leve em conta as

necessidades de saúde dos usuários.


45

S im

100%

Figura 10 – Existência de trabalho em


equipe nas unidades estudadas

Ainda de acordo com Peduzzi, há duas noções que recobrem a idéia de

equipe: a equipe como agrupamento de agentes, em que ocorrem ações

fragmentadas justapostas, culminando com a independência do projeto

assistencial por parte de cada categoria profissional, e a equipe como

integração de trabalhos, caracterizada pela articulação das ações e a interação

dos agentes, sendo pautada pela comunicação e a superação do isolamento

dos saberes.

Neste sentido, a abordagem transdisciplinar, ao propor consórcios e

articulações visando uma prática integral em saúde, colabora para a construção

de uma equipe do tipo integração, que busca, através do agir comunicativo, a

consolidação de um projeto assistencial comum.

Oito entrevistados apontaram a predominância do trabalho de algum

profissional sobre os demais membros da equipe, apontando as categorias de

nível universitário (médico, enfermeiro e cirurgião-dentista) como aquelas

detentoras de maior valoração ante as demais, o que aparentemente denota

uma contradição com o que foi apresentado na figura anterior, em que todos os

profissionais apontaram o trabalho nas unidades estudadas realizado de forma

conjunta.
46

35%

Sim
Não
65%

Figura 11 – Existência de um trabalho que


predomina sobre os demais

Em se tratando da construção de novos paradigmas no que tange ao

trabalho multiprofissional em saúde, uma dos maiores obstáculos a serem

transpostos diz respeito à divisão social do trabalho e à valoração de

determinados trabalhos sobre outros.

Peduzzi (2001) relata que a prática dos médicos é a pioneira em termos

da técnica científica moderna, e dela foram originados os demais trabalhos

especializados. Os trabalhos que se juntam ao do médico são necessários à

implementação de uma prática integral em saúde, mas além de serem diferentes

tecnicamente, são também desiguais no que tange à sua valorização social.

Ainda segundo Peduzzi (2001, p.106) “as diferenças técnicas

transmutam-se em desigualdades sociais entre os agentes de trabalho, e a

equipe multiprofissional expressa tanto as diferenças quanto as desigualdades

entre as áreas.”

Costa (2002) aponta que esta forma de estruturação do trabalho deixou

marcas na organização dos serviços de saúde, que acabaram por postular o

paradigma biologicista para se explicar o processo saúde-doença, com a

assistência voltada para a prática médica e os demais trabalhos sendo

considerados como auxiliares.


47

A divisão social do trabalho em saúde também foi discutida por Fortuna

et al (2005, p. 12):

Essa configuração de poder tende a perpetuar e a reproduzir-se na


divisão técnica e social do trabalho. Já nos referimos a essa divisão
em que cada um faz uma parte do trabalho (divisão técnica), com um
valor social diferente (divisão social do trabalho). Fica estabelecido, de
uma certa forma acordado, que quem "sabe mais", pode mais e manda
mais nos que "sabem menos" e, por isso, devem obedecer.

No caso do PSF, e mais especificamente das unidades estudadas, o

predomínio do trabalho dos profissionais de nível universitário sobre os demais

ressalta uma relação de subordinação que reflete a diferente valoração do

trabalho numa equipe de saúde.

Os profissionais de nível médio e básico (técnicos de enfermagem,

auxiliares de consultório dentário, agentes comunitários de saúde) precisam ter

suas falas e experiências consideradas na construção do projeto de assistência,

e deixar de ser meros profissionais-auxiliares, detentores do trabalho manual,

para se tornarem sujeitos deste processo. Tal fato somente ocorrerá com a

flexibilização da divisão social do trabalho, com a abolição destas relações

hierárquicas de subordinação e com a horizontalização das relações dentro do

programa.

A maioria dos entrevistados apontou que seu trabalho sofre a influência

de outros profissionais, e todos ressaltaram a importância da interação entre os

diferentes saberes na equipe, o que demonstra que a equipe é propícia à

instalação de projetos conjuntos de assistência.

Todos os entrevistados relataram que as ações realizadas nas unidades

estudadas são planejadas previamente. Ao se indagar sobre quem participava

da elaboração do planejamento das ações das unidades, as respostas foram


48

variadas: nove entrevistados apontaram que o planejamento nas unidades é

realizado de maneira participativa (toda a equipe participa na sua elaboração),

enquanto os demais deixaram implícita uma certa verticalidade nestas ações,

quando relataram que o planejamento fica delegado a determinados setores ou

cargos, como a Secretaria de Saúde, gerência da unidade ou o enfermeiro

Secretaria
Municipal de
Saúde
39% Gerência da
9% unidade
Sim
26% Enfermagem
100%
26%
Toda a
equipe

Figura 12 - Existência de planejamento Figura 13 – Participação na elaboração do


nas unidades planejamento

O planejamento estratégico em saúde no Brasil, até a década de 1990,

foi pautado pela formação normativa de planos. Este fato vem se modificado

desde a implantação de estratégias como o Programa Saúde da Família, em

que as ações são submetidas à realidade local e à participação popular antes de

serem balizadas como atos normativos (COSTA, 2002; MINISTÉRIO DA

SAÙDE, 2001).

TANCREDI, BARRIOS & FERREIRA (1998, p. 39) apontam as

habilidades necessárias aos membros de uma equipe de saúde, quando da

elaboração do planejamento de suas ações:


49

 Determinação para descobrir e examinar registros escritos


 Disposição de aprender da gente do local e dos recursos
locais
 Ouvir atentamente durante as entrevistas e as conversas
informais
 Atenção e sensibilidade a tudo o que possa ser observado
 Uso do bom senso na análise das informações

As habilidades citadas pelos autores, quando da elaboração do

planejamento das ações, vão encontro àquelas esperadas por uma equipe de

saúde que trabalhe em uma abordagem transdisciplinar, uma vez que

empreendem a visão complexa do setor, e valoriza a importância de se registrar

os diversos níveis de realidade apreendidos da comunidade, para então se

traçar um plano de assistência pertinente às necessidades das famílias adstritas

às unidades.

5.5 – Transdisciplinaridade na equipe de PSF

No que diz respeito ao conceito de transdisciplinaridade, apenas 11

entrevistados elaboraram alguma resposta, dentre elas:

É a junção da equipe multidisciplinar para o atendimento da


comunidade (E5)

Transdisciplinaridade é a interação entre vários profissionais de


diferentes especialidades (E10).

É quando as equipes se interagem, se “auto-judam” (E12)

É a integração de vários profissionais em uma mesma equipe, ou seja,


uma troca mútua de conhecimentos (E13)

Quando a equipe se une para traçar a mesma meta de trabalho (E22)

Como se observa pelos conceitos expostos, a idéia de

transdisciplinaridade é relacionada ao trabalho em equipe, em busca de

soluções compartilhadas para os problemas, o que aproxima da real concepção

desta abordagem de trabalho.


50

Segundo Paul (2000), o termo foi provavelmente enunciado pela

primeira vez pelo psicólogo e filósofo suiço Jean Piaget em 1970, numa palestra

sobre interdisciplinaridade. Piaget era favorável à superação da relação

interdisciplinar por uma etapa superior, transdisciplinar, com as disciplinas

situadas no interior de um sistema total, sem fronteiras estáveis entre elas.

Freitas, Morin e Nicolescu (1994), em sua Carta da

Transdisciplinaridade, apontam a proliferação das disciplinas acadêmicas na

atualidade como um fator que impede a visão global do ser humano. Os autores

destacam o papel da transdisciplinaridade enquanto elemento de abertura entre

os diversos campos disciplinares a tudo o que os unifica e os ultrapassa.

Com o passar do tempo, um conjunto de autores pesquisam o tema, e

muitos conceitos foram surgindo, e atualmente busca-se empenhar na

construção de seu aparato prático-metodológico. O quadro a seguir sintetiza

alguns dos principais conceitos do tema, que orientaram a reflexão desta

pesquisa.

A aplicação da transdisciplinaridade na área da saúde veio de encontro

à necessidade de se pensar numa abordagem de trabalho que fosse apta a

enfrentar a complexidade do setor.


51

TRANSDISCIPLINARIDADE

Radicalização da interdisciplinaridade, com a criação de um campo

JAPIASSU apud teórico particular relativo a um conjunto de disciplinas, com uma

IRIBARRY (2003) axiomática comum, e com disciplinas articuladas em diferentes

níveis.

GALHEIGO Uma etapa posterior à interdisciplinaridade, quando haveria a

(1999) superação dos limites disciplinares.

A transdisciplinaridade envolve reciprocidades entre projetos de

CHAVES (1998) pesquisa, e a unificação dessas relações num sistema total, sem

limites rígidos entre as disciplinas.

Quadro 4 – Transdisciplinaridade: síntese segundo vários autores

Autor / conceito

A saúde, como ressalta Chaves (1998), representa um setor social

ligado a outros sendo também dependente dos setores econômicos. A própria

Constituição, como debatido anteriormente, tutela a saúde como possuidora de

um caráter multidimensional, ao caracterizá-la, de acordo com a lei 8080/90,

como resultante de vários fatores determinantes.

Ao serem solicitados a apontar os fatores determinantes para os

problemas de saúde da comunidade adstrita às suas unidades, alguns dos mais

citados foram: educação, moradia, emprego, saneamento básico, dentre outros

que expressam, na visão dos entrevistados, que o processo saúde-doença é

multidimensional e multirreferencial (CHAVES, 1998).

Uma equipe imbuída do espírito transdisciplinar vai medir todos os

esforços na construção de uma visão ampliada do processo saúde-doença. Um

grande avanço, neste sentido, seria a criação de um prontuário transdisciplinar,


52

de acesso universal, preenchido por todos os profissionais em etapas

sucessivas, e que contivesse, além da identificação do usuário e as informações

acerca de seus sistemas orgânicos, a análise de todo o seu contexto sócio-

econômico, abarcando todas as variáveis possíveis que estariam submetendo o

indivíduo e sua família aos fatores de risco às doenças e agravos à saúde.

Alves (2005, p.5) expressa muito bem o perfil do profissional de saúde

pública que abarque a amplitude do processo saúde-doença:

O olhar do profissional (...) deve ser totalizante, com apreensão do


sujeito biopsicossocial. Assim, seria caracterizada pela assistência que
procura ir além da doença e do sofrimento manifesto, buscando
apreender necessidades mais abrangentes dos sujeitos.

A abordagem transdisciplinar, ao empreender a complexidade do setor

saúde, ao mesmo tempo vai despertar na equipe o senso de que é necessário o

apoio de outros setores, tanto no que tange à na elaboração do planejamento,

quanto à execução das ações que não são da esfera da Secretaria Municipal de

Saúde, como, por exemplo, as relacionadas à assistência e inclusão social das

famílias, à segurança pública, à educação, dentre outras.

Todos os profissionais participantes da pesquisa, atendendo a esse

ínterim, consideraram importante o apoio intersetorial na resolução dos

problemas de saúde da comunidade adstrita, fato observado em algumas

respostas:

O PSF necessita de parcerias para resolver seus problemas (E4)

O profissional não consegue resolver todos os problemas que surgem


(sócio-econômico, cultural, emocional, etc.), daí esta necessidade
(E14).

É o que se chama interação, quanto mais setores auxiliarem, maior o


êxito no trabalho (E23)
53

Buss (2000, p. 17) discorreu sobre a necessidade do profissional de

saúde extravasar os limites de seus campos de saber para buscar o apoio

intersetorial:

Do ponto de vista conceitual, a intersetorialidade procura superar a


visão isolada e fragmentada na formulação e implementação de
políticas e na organização do setor saúde. Significa adotar uma
perspectiva global para a análise da questão saúde, e não somente do
setor saúde, incorporando o maior número possível de conhecimentos
sobre outras áreas de políticas públicas, como, por exemplo,
educação, trabalho e renda, meio ambiente, habitação, transporte,
energia, agricultura etc., assim como sobre o contexto social,
econômico, político, geográfico e cultural onde atua a política.

Tendo em vista o exposto acima, entende-se que uma equipe de saúde

coletiva, como é o caso do PSF, necessita superar visões reducionistas e lidar

de maneira efetiva frente à complexidade do setor saúde. Logicamente

depreende-se que profissionais com a visão ampliada da realidade local

possuem um perfil mais adequado para a intervenção no programa. A

transdisciplinaridade é evocada, neste sentido, para se trabalhar este objeto

complexo, que “é multifacetado, alvo de diversas miradas, fonte de múltiplos

discursos, extravasando os recortes disciplinares da ciência” (ALMEIDA FILHO,

1997, p.11).

Quando questionados sobre qual o perfil mais adequado para o

profissional do PSF, a grande maioria dos entrevistados (20) respondeu que o

programa seria beneficiado com profissionais generalistas, em oposição aos

serviços mais especializados. Algumas justificativas foram:

Com certeza um profissional com visão mais geral, levando e


buscando conhecimentos, pois o PSF é uma unidade que promove a
atenção básica de saúde (E9)

Como o atendimento do PSF é de forma geral, há necessidade de que


seus profissionais tenham visão geral do processo saúde-doença
(E10)

Porque o profissional do Programa Saúde da Família deve ter uma


visão ampla de conhecimento, pois o programa deve abranger toda a
comunidade (E12)
54

Peduzzi (2001, p. 107) lembra que “o trabalho em equipe não pressupõe

abolir as especificidades dos trabalhos, pois as diferenças técnicas expressam a

possibilidade de contribuição da divisão do trabalho para a melhoria dos

serviços prestados”. A autora ressalta, porém, que é necessário existir, numa

equipe multiprofissional, a flexibilização da divisão do trabalho, no âmbito de se

integrar os saberes provenientes dos diferentes campos.

Catorze dos entrevistados (39%) informaram não concordar com ações

que transpassem as funções pré-estabelecidas por cada membro da equipe.

Concordam
39%

61% Não
concordam

Figura 14 – Concepção dos entrevistados quanto


à superação das funções pré-estabelecidas
dentro da equipe

“Extrapolar as funções pré-estabelecidas” não se trata, em hipótese

alguma, de violar as competências específicas de qualquer categoria que seja,

pois o respeito às bases disciplinares específicas é uma das características do

projeto transdisciplinar.

A explicação correta do termo (extrapolar funções) abarcaria a

construção de uma prática transdisciplinar no PSF, introduzindo a equipe a esta

nova abordagem de trabalho, incluindo suas metas e objetivos, fazendo com

que os profissionais apresentem maior compromisso com os resultados (

resolutividade da atenção básica), e não somente se preocupem em cumprir

tarefas que lhe são destinadas, como, por exemplo, alcançar as metas de
55

produtividade, preencher corretamente os formulários, dente outras (TANCREDI,

BARRIOS & FERREIRA, 1998).

Da mesma maneira, trabalhar a transdisciplinaridade no PSF requer que

cada membro da equipe esteja familiarizado com as disciplinas de seus colegas,

disponibilidade e tolerância para reconhecer posicionamentos diferenciados

frente a um mesmo objeto e a mobilização de recursos de outros setores para a

resolução dos problemas de saúde da comunidade adstrita à unidade

(IRIBARRY, 2003; BUSS, 2000). Assim, o profissional deve se abster das

práticas fragmentadas e projetos autônomos de assistência, abarcando um agir

em conjunto, um agir-comunicativo, construindo, a partir dos vários níveis de

realidade presentes na equipe, uma prática integral que reoriente o modelo

assistencial (ALVES, 2005).

A implantação do projeto transdisciplinar em saúde vai suscitar questões

como a exposta anteriormente. Certamente, para alguns profissionais seria mais

cômodo o desempenho de suas funções dentro dos estritos limites que lhes são

normatizados. O prefixo “trans”, porém, sugere a transcendência, a transposição

de fronteiras; requer abertura ao novo e ao imprevisível. Exige tolerância e

respeito aos diferentes níveis de realidade; finalmente, privilegia as articulações

e consórcios entre os membros da equipe.

O benefício do olhar técnico, com a perda da globalidade, faz com que o

paciente se sinta despossuído de seu status de sujeito. Aliado a esta questão, a

diversidade sócio cultural muitas vezes impede, numa equipe não capacitada, o

estabelecimento de um diálogo eficiente com a comunidade. É necessário, pois

a criação de um paradigma integrador, que remeta à complexidade do setor

saúde e que estabeleça não só um sistema eficiente de comunicação entre os


56

membros da equipe e destes com o usuário, mas que seja resolutivo em termos

da assistência prestada (COSTA & CARBONE, 2004; PAUL, 2000).


57

CONCLUSÂO

Caminhante, são teus rastos o caminho, e nada mais;


caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar. Ao
andar faz-se o caminho, e ao olhar-se para trás vê-se a senda
que jamais se há de voltar a pisar. Caminhante, não há
caminho, somente sulcos no mar (MACHADO, 1973, p. 158)

Elucidar concepções e práticas de uma abordagem de trabalho em

saúde que ainda se encontra em seu período de reflexão no Brasil é uma tarefa

árdua, mas espera-se que a semente deste projeto seja lançada nos ricos

solos da pesquisa científica. O estudo do processo de trabalho realizado em

duas unidades do Programa Saúde da Família de Unaí (MG) propiciou o

reconhecimento de algumas idéias, dentre elas:

- A abordagem transdisciplinar em saúde representa uma forma de trabalho em

equipe em que ocorre um intenso grau de cooperação entre os diferentes

campos disciplinares, representados pelas categorias profissionais diversas que

compõem uma equipe multiprofissional, com a finalidade comum que é a

construção de uma prática integral e a resolutividade em termos da atenção

básica à saúde.

- A transdisciplinaridade representa uma forma democrática de se relacionar

numa equipe multiprofissional em saúde, uma vez que prioriza a participação de

todas as categorias, através de seus níveis de realidade, para a construção de

um projeto comum que consiga lidar de maneira mais efetiva com a

complexidade que compõe o setor saúde.

- A construção de uma axiomática compartilhada, fruto das relações

transdisciplinares, deve ser realizada nos espaços formais de reunião da equipe,

como as reuniões de planejamento, grupos de educação para a saúde e grupos


58

de estudo, e o projeto assistencial comum que daí advenha poderá ser aplicado

no cotidiano dos serviços.

- Foi observado que as equipes estudadas apresentam elementos favoráveis à

implantação do projeto transdisciplinar em saúde, como a flexibilidade da divisão

social do trabalho e a presença nas unidades de grupos de estudo e reuniões de

planejamento, o que denota uma boa comunicação entre os profissionais.

- Qualquer proposta de mudança em termos de prática no PSF precisa ser

realizada ao mesmo tempo em que o programa trabalha no ápice de suas forças

pelo país afora. Fazendo um trocadilho, seria como “apertar o parafuso da roda

de um carro com ele em movimento”. Portanto, a transdisciplinaridade necessita

ser primeiramente elucidada enquanto realidade das ações em saúde. Logo em

seguida, pode-se pensar na aplicação de projetos-piloto, com sucessivas etapas

de capacitação dos profissionais frente a esta nova abordagem de trabalho,

culminando com a avaliação dos resultados.

A literatura ainda dispõe escassos referenciais teóricos sobre o tema, o

que nos faz ter mais dúvidas do que certezas. Torna-se clara a necessidade de

mais pesquisas neste campo, e espera-se, com este trabalho, ter contribuído

para a elaboração de um projeto de assistência em saúde que abarque as reais

necessidades em termos de coletividade.


59

REFERÊNCIAS

ALMEIDA FILHO, N. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Ciência e saúde


coletiva 11 (1/2),p. 5-20, 1997.

ALONSO, L. Gestão compartilhada de conhecimento: articulação entre


saberes, competências e interesses. Momento do professor. Revista de
educação continuada, São Paulo, ano 2, n2, p24-31, outono de 2005.

ALVES, V.. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da


Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo
assistencial. Interface-Comunic, Saúde, Educ, V.9, n.16, p.35-52, set 2004/fev
2004.

ASSIS, M.; MIRON, V.; WETZEL, C.; ALMEIDA, M.; NASCIMENTO, M: Análise
de dados qualitativos em saúde: uma experiência coletiva de classificação.
Sittientibus, Feira de Santana, nº 18, p. 67-74, jan-jun 1998

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia prático do PSF. Saúde da família,


Ministério da Saúde, Departamento de Atenção Básica 2001. 128 p.
BUSS, P. Promoção da saúde e qualidade de vida. Ciênc. saúde coletiva.,
Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2000.

CHAVES, M.: Complexidade e transdisciplinaridade: uma abordagem


multidimensional do setor saúde. 1998. Disponível em
<www.ipetrans.hpg.ig.br/arq2.htm> . Acessado em 08/02/2006.

COSTA, R. Interdisciplinaridade e equipes de saúde: um estudo de caso.


Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção), UFSC, Florianópolis,
2002.

COSTA, E. e CARBONE, M.: Saúde da Família- uma abordagem


interdisciplinar. Rio de Janeiro: Rubio, 2004

FREITAS, L.; MORIN, E.; NICOLESCU, B.: Carta de Transdisciplinaridade.


Primeiro congresso mundial da transdisciplinaridade. Arrabida, Portugal, 2004.

FORTUNA, C. et al . O trabalho de equipe no programa de saúde da família:


reflexões a partir de conceitos do processo grupal e de grupos operativos.
Rev. Latino-Am. Enfermagem., Ribeirão Preto, v. 13, n. 2, 2005.

GALHEIGO, S. A transdisciplinaridade enquanto princípio e realidade das


ações de saúde. Rev. De Terapia Ocupacional da USP, v. 10, n, 2-3, pp. 49-54,
1999.

GARRAFA, V. Simpósio sobre estudo epistemológico da bioética,


Montevideo, Uruguai, 2004
60

IRIBARRY, I. Aproximações sobre a transdisciplinaridade: algumas linhas


históricas, fundamentos e princípios aplicados ao trabalho de equipe.
Psicol. Reflex. Crit., 2003, vol.16, no.3, p.483-490.

LAMPERT, J. Na Transição Paradigmática da Educação Médica: O que o


paradigma da integralidade atende que o paradigma Flexneriano deixou de lado.
Publicado no
Boletim da ABEM em julho-agosto-setembro-outubro/2003

MORIN, E. Da necessidade de um pensamento complexo. Disponível em:


http://sevicisc.incubadora.fapesp.br/portal/Members/pelegrini/ntc/pensamentoco
mplexo.pdf. Acessado em 18/12/2006.

NEVES, J. Pesquisa qualitativa- características, usos e possibilidades.


Caderno de pesquisas em administração, São Paulo, V. 1, n° 3 , 2° sem. 1996

NICOLESCU, B.: O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo, Coleção


Trans. 2001.

NICOLESCU, B. Reforma da educação e do pensamento: complexidade e


transdisciplinaridade. Disponível em:
<http://www.engenheiro2001.org.br/curriculos.htm> Acessado em 17/07/2006.

OLIVEIRA, F. Interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e teologia. 2000.


Disponível em:<http://www.redemptor.com.br/~soter>. Acessado em 18/07/2006

PAIM, J.: A reforma sanitária e os modelos assistenciais. In: Rouquayrol, M.


& Almeida Filho, N.. Epidemiologia e Saúde, 6ª ed., Rio de Janeiro, 2003.

PAUL, P. Visão transdisciplinar na saúde pública. Conferência da faculdade


de saúde pública da USP. São Paulo- Brasil.2000. Disponível em
<www.cetrans.com.br/page.preview.aspx/textos/artigo/centro-textos-artigos-
saúdepublica.htm>. Acessado em 15/02/2006.

PEDUZZI, M.. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev.


Saúde Pública, fev. 2001, vol.35, no.1, p.103-109. ISSN 0034-8910.

PREFEITURA MUNICIPAL DE UNAÍ – MG. Guia turístico de Unaí – MG 2004-


2005. Unaí: Diplomata, 2004.

ROSA, W.; LABATE, R. Programa saúde da família: a construção de um


novo modelo de assistência. Rev lat-am Enfermagem, nov-dez 2005.

SAUPE, R. et al. Competência dos profissionais da saúde para o trabalho


interdisciplinar. Interface – Comunic.,Saúde, Educ., v.9, n.18, p.521-36, set/dez
2005

SIQUEIRA, H. Formação interdisciplinar: exigência sociopolítica para um


mundo em rede. VII Simpósio Estadual de Economia Doméstica, UNIOESTE,
61

2003. Disponível em <http://br.geocities.com/holgonsi/mundorede.html>.


Acessado em 04/06/2006

TANCREDI, F.; BARRIOS, S.; FERREIRA, J. Planejamento em saúde. São


Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Faculdade de São Paulo, 1988

YIN, R. Case Study Research: design and methods. 2002. Disponível em


<http://www.focca.com.br/cac/textocac/Estudo_Caso.htm>. Acessado em
03/06/2006.
62

ANEXO – Questionário utilizado na pesquisa

Caro Profissional de Saúde:

Agradecemos desde já sua participação. Ao término do trabalho poderemos fornecer uma cópia
do mesmo, para possíveis aplicações e estudos.

Cordialmente,
Leonardo Lima Lemos*
Núbia Reineiros*
Victor de Morais*

(*Especializandos em Saúde coletiva, com ênfase em Saúde da Família, pela Universidade de


Brasília)

Data:
Equipe:

1 – Identificação
1.1 - Idade
( ) 20 a 30 ( ) 30 a 40 ( )40-50 ( ) acima de 50

1.2 - Sexo
( )fem. ( )masc

2- Formação
2.1 - Profissão
( )Médico-especialidade: ______________________
( )Enfermeiro
( )Técnico de enfermagem
( )Cirurgião-dentista
( )Agente comunitário de saúde
( )Auxiliar de consultório dentário

2.2 - Escolaridade
( ) 1º grau ( ) 2º grau ( ) Superior completo ( ) Pós-graduação

2.3 - Cursos de pós-graduação


( )especialização
( )mestrado
63

( )doutorado
( )pós-doutorado

2.4 - Tempo de exercício profissional:


( )1 a 5 anos
( )5-10 anos
( )10-15 anos
( )+ 15 anos

2.5 - Tempo de trabalho na equipe:


( )menos de 1 ano
( )1 – 5 anos
( ) Mais de 5 anos

2.6 - Você participou de algum curso que abordasse a atuação multiprofissional, nos últimos 5
anos?
( )Sim. Quais?
( )Não. Por que?

2.7 - Existem grupos de estudo realizadas na Unidade de Saúde da família da qual você faz
parte?
( )Sim
( )Não

2.8 - Você participa desses encontros?


( )Sim
( )Não. Por que?

3- Trabalho na equipe de PSF

3.1 - Como ingressou na equipe:


( ) Concurso público
( ) Indicação
( ) outros_____________________

3.2 - Você participou de algum treinamento antes de fazer parte da equipe?


( ) Sim- coordenado por profissionais da SMS / coordenado por profissionais do próprio
serviço
( ) Não
64

3.3 - Enumerar a rotina de trabalho, na ordem em que as atividades são realizadas:


( ) atendimento individual ao paciente
( ) Grupos de educação para a saúde / sozinho / em parceria com a equipe
multiprofissional
( ) Participação em reuniões para traçar planejamento
( ) Participação em reuniões de avaliação do trabalho
( ) Outras

3.4 - Você considera que existe trabalho em equipe na Unidade em que você trabalha?
( ) Sim. Por que?
( ) Não. Por que?

3.5 - Existem reuniões entre os profissionais que fazem parte do PSF em que você trabalha?
( ) Sim. Periodicidade_________________________
( ) Não

3.6 - Quem coordena o trabalho em equipe?


( ) Gerente ( ) Médico
( ) Enfermeiro ( ) Técnico de Enfermagem
( ) Outro________________

3.7 - Como o coordenador da equipe é escolhido?


( ) Pela Secretaria Municipal de Saúde
( ) Pelos trabalhadores de saúde
( ) Um líder, surgido espontaneamente
( ) A partir de um planejamento

3.8 - Quando ocorre maior interação da equipe de profissionais de sua unidade? (Numere,
começando pelo nº 1 para a ação com maior integração)
( ) No atendimento aos pacientes
( ) Na discussão de casos
( ) No planejamento das ações
( ) Nos momentos de descontração
( ) Nas festas e momentos de lazer
( ) Outra

3.9 - O seu trabalho na Unidade é influenciado pela ação de um outro profissional da equipe?
( ) Sim- Positivamente / Negativamente
65

Como?

( ) Não

3.10 - O trabalho de um profissional predomina sobre os demais?


( ) Sim. Categoria Profissional:
( ) Não

3.11 – Você considera o trabalho com outros profissionais importante para que ocorram novos
aprendizados?
( ) Sim. Como / quando eles ocorrem?
( ) Não. Por que?

3.12 - As ações de saúde da Unidade são planejadas?


( ) Sim.
( ) Não

3.13 - Quem participa da elaboração do planejamento?


( ) Secretaria Municipal de Saúde
( ) Gerência da Unidade
( ) A enfermagem
( ) Usuários
( ) Toda a equipe

4- Transdisciplinaridade na equipe de PSF


4.1 - O que você entende por transdisciplinaridade?

4.2- Tendo como referência a assistência à saúde prestada pela sua Unidade, quais o(s)
fator(es) que você considera determinante(s) para os problemas de saúde de sua comunidade ?

4.3- O PSF requer profissionais com visão mais geral do processo saúde-doença ou
profissionais mais especializados? Por que?
66

4.4- Você considera importante o apoio de outros setores na resolução dos problemas de saúde
da comunidade adscrita à sua USF?
( )Sim. Por que?

( )Não. Por que?

4.5- Você considera possível um profissional de PSF exercer ações que extrapolam os limites de
suas funções pré-determinadas?
( )Sim . Com que finalidade o profissional extrapolaria suas funções?

( )Não. Por que?

You might also like