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Jesus, um judeu da Galiléia: Nova leitura da história de Jesus
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Ebook430 pages6 hours

Jesus, um judeu da Galiléia: Nova leitura da história de Jesus

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About this ebook

Em Jesus, um judeu da Galileia, Sean Freyne explica muitos dos dados e do comportamento de Jesus em relação ao seu contexto na Galileia. O leitor é convidado a uma viagem através da Palestina na perspectiva de Jesus, olhando aquele mundo com os olhos de um judeu plenamente educado nas suas tradições. Este trabalho é enriquecido pelo detalhado e amplo conhecimento que o autor tem das fontes literárias e arqueológicas.
LanguagePortuguês
Release dateJul 28, 2014
ISBN9788534939713
Jesus, um judeu da Galiléia: Nova leitura da história de Jesus

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Jesus, um judeu da Galiléia - Sean Freyne

Rosto

Índice

PREFÁCIO

ABREVIATURAS

1. JESUS, OS JUDEUS E A GALILÉIA: INTRODUZINDO AS QUESTÕES

Os evangelhos e o Jesus histórico

A Galiléia e Jesus

A contribuição da arqueologia

Definindo a explanação deste estudo

2. JESUS E A ECOLOGIA DA GALILÉIA

Fatores ecológicos e cultura humana

A ecologia da Terra Prometida

Os profetas e o meio ambiente de Israel

Sabedoria e Criação

Jesus e as microecologias da Galiléia

Do deserto à baixa Galiléia

MAPA 1 Relevo da Galiléia

De Nazaré a Cafarnaum

As regiões em torno da Galiléia

3. HISTÓRIAS DE CONQUISTA E de POVOAMENTO

A Galiléia e a Liga das doze Tribos de Israel

As bênçãos das tribos

MAPA 2 . Fronteiras ideais das tribos

Imagens contrastantes de todo o Israel

A Galiléia e as narrativas de conquista e de povoamento

MAPA 3 A terra que resta no Norte

Os fracassos das tribos

As cidades cananéias da Terra Prometida

Jesus e a Galiléia israelita

Jesus e a terra que resta

MAPA 4 Limites da Galiléia no período romano

Boas-vindas para os cananeus?

Nas fronteiras de Tiro

4. SIÃO CHAMA

Jerusalém como centro

Isaías e Sião

As nações e a restauração de Israel

Mãe Sião

A Comunidade de Servos de Sião

Jesus e Sião, uma perspectiva isaiana

Jesus e as Nações

Jesus e Sião

Os discípulos de Jesus como Comunidade dos Servos

5. ENFRENTANDO OS DESAFIOS DO IMPÉRIO

A resposta da judéia ao imperialismo grego e romano

Opondo-se ao Grande Rei

Os Sábios

Fariseus, Saduceus e Essênios

Jesus e os valores imperiais romanos na Galiléia

Jesus e o reino de Deus

Imaginação apocalíptica e uma revolução nos valores

Enfrentando o poderio romano

Deus ou César?

6. MORTE EM JERUSALÉM

Jesus e o Templo

Renovação, não reforma

O templo num contexto escatológico

A morte de um mártir?

Um precursor profético?

Entendendo a morte de Jesus

EPÍLOGO: O RETORNO À GALILÉIA

BIBLIOGRAFIA

ÍNDICE DE REFERÊNCIA

ÍNDICE GERAL

Para Gail, Bridget e Sarah, e em memória dos meus pais, John Vincent Freyne, falecido em 1940, e Lucy Ellen O’Flaherty, falecida em 1984.

PREFÁCIO

Ah, não, mais uma tentativa de descobrir o Jesus histórico! Certo: o tema tem sido tão repisado nas últimas décadas que logo vai acabar merecendo uma licença sabática. Ainda assim, há sempre a tentação de acreditar, sem dúvida ingenuamente, que determinado aspecto ainda não descoberto, ou que pelo menos ainda não foi tratado com a devida propriedade, poderia, quem sabe, ser a chave para um entendimento mais adequado da questão, que em sua forma atual nos acompanhou por mais de 250 anos. A minha visão particular articula-se a partir de um ponto de vista galileu, sugerido pela maneira como, num passado mais recente, a Galiléia de Jesus tem sido vista por diferentes estudiosos. Com efeito, tem-se ocasionalmente a impressão de que a busca pelo Jesus histórico corre o risco de transformar-se na busca pela Galiléia histórica, com todas as previsíveis ciladas hermenêuticas que esta última iniciativa também é capaz de ensejar.

O contexto mais imediato deste estudo foi dado pelo convite que recebi para ministrar duas séries de palestras como professor visitante sobre os vários aspectos dos estudos contemporâneos da Galiléia – as Gunning lectures, que tiveram lugar na Universidade de Edimburgo (1998) e as J. J. Thiessen lectures, na Universidade Menonita de Winnipeg, no Canadá, no ano de 2002. Sou muito grato aos professores e alunos de ambas as instituições por receberem as minhas idéias com tanta cordialidade. Com sua participação crítica, eles ajudaram consideravelmente no ajustamento do meu foco, mesmo que, à primeira vista, não venham a reconhecer a forma final de que as minhas idéias se revestiram. Isto se aplica especialmente à visão de longo alcance que adotei ao abordar os diversos tópicos a partir da perspectiva das escrituras hebraicas. O tema tratado no segundo capítulo, Jesus e a Ecologia da Galiléia, representa, salvo melhor juízo, uma novidade no estudo contemporâneo do Jesus histórico. Sou também grato aos organizadores da Manson Lecture, na Universidade de Manchester, por me dar a oportunidade de apresentar as minhas primeiras reflexões sobre o assunto (2003), que aqui foram expandidas e revisadas com o objetivo de compor o horizonte dentro do qual outros aspectos da carreira de Jesus puderam ser desenvolvidos.

Sinto-me compelido a agradecer ainda ao paciente e delicado incentivo do Dr. Geoffrey Green, da T&T Clark (a editora), presente desde que o projeto deste livro começou a ser discutido muitos anos atrás; naquela época ele deve ter pensado que o manuscrito jamais viria à luz; também o encorajamento prático de Rebeca Mulhearn, da T&T Clark International (Continuum), a qual me ajudou consideravelmente a concentrar os esforços nos últimos meses de redação. Também tive à minha disposição um fórum sempre pronto para debater minhas idéias, composto pelos colegas e alunos do Programa de Religiões e Teologia, e do Programa Conjunto de Estudos Mediterrâneos e do Oriente Médio do Trinity College, em Dublin. Não obstante tudo isso, um autor deve assumir a responsabilidade pelas idéias que expressa e confiar que elas terão uma recepção simpática, mas não acrítica, à guisa de avaliação final. Envio meus agradecimentos ainda ao meu amigo Tom O’Neil pelo auxílio prestado com os mapas. Como sempre, sou devedor de uma palavra especial de agradecimento à minha família, que concedeu o tempo e o espaço necessários para que me devotasse a esse projeto.

Sean Freyne

Trinity College, Dublin

maio de 2004

ABREVIATURAS

Abreviaturas-padrão são usadas para indicar os livros bíblicos, também os apócrifos e pseudepígrafos, os Manuscritos do Mar Morto e os textos rabínicos. As citações bíblicas seguem o texto da Bíblia de Jerusalém, assim como a tradução tradicional da obra de Flávio Josefo.

1

JESUS, OS JUDEUS E A GALILÉIA: INTRODUZINDO AS QUESTÕES

As muitas idas e vindas dos estudos que marcam a busca pelo Jesus histórico têm sido uma preocupação constante da teologia ocidental por mais de dois séculos, e mesmo assim nenhum consenso foi atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundou. É comum, e também um tanto esquemático, classificar em três estágios a moderna busca impulsionada pela publicação póstuma dos Fragmentos de H. S. Reimarus por G. E. Lessing, em 1786. São eles: as Vidas de Jesus, do século XIX, de inspiração liberal, posteriormente denunciadas como relatos anacrônicos e modernizados do Nazareno por Albert Schweitzer, em seu The Quest of the Historical Jesus (1968); a nova busca que se seguiu aos trabalhos de Rudolf Bultmann, em meados do século XX, marcada por uma abordagem um tanto minimalista da questão, e, finalmente, a nova terceira onda de estudos, principalmente, mas não exclusivamente, associada às atividades desenvolvidas no ambiente do Jesus Seminar, nos Estados Unidos, no decorrer dos anos 1990.¹

Em relação aos que o precederam, o traço distintivo deste capítulo mais recente dos estudos sobre o Jesus histórico é o marcado interesse pelos aspectos sociais, em contraste com os religiosos, da vida de Jesus. Esta mudança de ênfase pode sem dúvida ser atribuída a muitos fatores em operação nas sociedades ocidentais do fim do século XX, fatores que levaram a uma crescente secularização dos estudos do Novo Testamento. Enquanto anteriormente os debates se davam em torno dos diversos títulos que Jesus pode ter efetivamente empregado como autodenominações (Messias, Filho do Homem ou Senhor, por exemplo), ou de seu papel como profeta ou líder carismático, hoje ele caracteriza-se tipicamente como um reformador social, um ativista camponês ou um dissidente da escola filosófica dos Cínicos. Com efeito, é bastante irônico, embora inelutável, que, numa era de globalização, os estudos mais recentes sobre a vida de Jesus tratem primordialmente dos aspectos locais da sua vida pública, despertando um interesse renovado também pela Galiléia.

Os evangelhos e o Jesus histórico

A mudança de ênfase do universal para o particular, longe de simplificar a tarefa do historiador da vida de Jesus, demanda conhecimento mais profundo e mais crítico de um bom número de disciplinas. Hoje não é mais suficiente apenas assumir uma posição acerca da questão intensamente debatida da natureza histórica dos evangelhos; cumpre, igualmente, combinar intuições sobre história da Antiguidade com conhecimentos da arqueologia e das ciências sociais, particularmente a antropologia cultural. Idealmente, um projeto como este requer um grupo de estudiosos engajados num estudo interdisciplinar; e, com efeito, tamanha é a fascinação pelo tema, que, nos últimos 25 anos, não faltaram candidatos para levar a cabo essa realização. Não obstante, é inevitável que estudos dessa natureza dêem lugar a várias discussões acerca dos procedimentos corretos a serem adotados e das metodologias a serem empregadas. Em meio a uma grande variedade de opiniões, torna-se imperativo delinear, ainda que brevemente, a perspectiva adotada em nosso estudo, ao menos para fornecer ao leitor alguma orientação com que julgar a adequação do resultado em relação à tarefa assumida.

O dilema mais óbvio enfrentado por qualquer pesquisador desta área é, com certeza, como evitar as críticas de algum futuro Albert Schweitzer contra uma modernização indevida (leia-se: anacrônica) da figura de Jesus. A nossa consciência do presente acha-se sempre envolvida no ato de imaginar o passado e, à medida que a figura de Jesus pode ser apresentada de modo a corroborar nossos melhores sonhos e percepções, é difícil evitar a tentação de cooptá-la para a nossa causa, seja esta qual for. A despeito da óbvia armadilha, ainda há entre nós os que crêem que, ainda que uma apresentação completamente objetiva de Jesus seja um ideal inatingível, é sim possível evitar os impasses que marcaram alguns dos estudos anteriores sobre o tema. Foi nesta perspectiva que John Dominic Crossan, um dos mais prolíficos membros do Jesus Seminar, expôs suas posições sobre o assunto no estilo elegante e afiado que o caracteriza, na introdução do seu exitoso estudo de 1991. Descrevendo a situação atual, marcada pela existência de muitos retratos contrastantes de Jesus, como um embaraço acadêmico, Crossan declara como seu objetivo primário não contribuir para a impressão de subjetividade acadêmica que hoje persegue a pesquisa do Jesus histórico. Assim, a sua preocupação, segundo ele mesmo nos informa, não é com uma objetividade inatingível, mas com uma exeqüível honestidade, e, para atingir este fim, ele exorta outros estudiosos a segui-lo na adoção de um processo triplamente triádico, que diz respeito à interação de uma abordagem interdisciplinar, incluindo as ciências sociais, à estratificação científica das tradições que falam de Jesus e ao uso crítico deste inventário de informações no processo de reconstrução histórica.² Da mesma forma, John Meier, que de modo independente mas paralelo em relação a Crossan assumiu a tarefa de repensar o Jesus histórico, demonstra cautela em relação à propriedade do termo objetividade para classificar o seu estudo.³ Apesar disso, ele acredita que o esforço para atingir esse ideal de objetividade tem pelo menos a boa conseqüência de evitar que se caia em um subjetivismo desenfreado. Neste sentido, Meier propõe uma distinção que nos parece ser de grande ajuda entre o Jesus real (por mais problemático que seja o uso do termo com referência a qualquer figura passada) e o Jesus histórico. Este último é uma construção moderna que pode, através do uso dos métodos científicos mais avançados, nos dar fragmentos do Jesus real. E mesmo com isso assevera-se ainda difícil separar completamente o Jesus histórico, como uma figura do passado, do Jesus da história, visto como aquele cuja memória continua a influenciar a história ocidental, seja num sentido geral, seja no sentido mais especificamente cristão de Jesus como o Cristo Ressuscitado, o próprio objeto da pregação e da fé cristãs, como aliás ele já aparece representado nos documentos mais antigos.⁴

A hesitação demonstrada por estes dois estudiosos em relação à questão da objetividade do Jesus histórico põe em relevo a natureza específica das nossas fontes primárias, os evangelhos. Crossan é bastante explícito ao identificar o problema aqui envolvido: Os evangelhos não são nem histórias nem biografias, até quando pensados na perspectiva da tolerância que a Antiguidade admitia entre esses gêneros.⁵ Foi este entendimento particular sobre a natureza dos evangelhos que o levou a se lançar ao complexo processo de estratificação das tradições textuais com vista a estabelecer os materiais potencialmente autênticos. A partir dos dados adquiridos por meio deste processo, ele se diz disposto a aceitar apenas as informações que podem ser atestadas por pelo menos duas fontes independentes, abrindo, assim, o flanco para a crítica de que, adotando-se os princípios metodológicos que informam a sua posição e a posição de seus colegas de Seminário, informações históricas perfeitamente confiáveis serão rejeitadas, seja porque aparecem apenas em uma única fonte, seja porque eles não se mostram dispostos a explorar as informações autênticas potencialmente dissimuladas nas camadas superiores, redacionais, dos evangelhos.

Em minha opinião, este julgamento, por maior que seja a sua aparência de rigor científico, é demasiadamente restritivo e não leva suficientemente em conta a natureza particular dos evangelhos. A alternativa a esta posição não é voltar a um historicismo ingênuo que busca ignorar os resultados do estudo crítico dos evangelhos ou minimizar as diferenças existentes entre eles. Metas mais modestas e mais realistas precisam ser estabelecidas com base no caráter específico das fontes que nós de fato possuímos. Isso envolve o reconhecimento de que o formato dos evangelhos não é uma invenção aleatória, como já foi sugerido pela Escola Crítica, mas que, ao contrário, através dele se buscou estabelecer um quadro narrativo para o querigma de Jesus para atender a demanda pela produção de um relato como este, surgida entre os cristãos da segunda geração. Isto significa que não há evidências históricas puras disponíveis nas tradições do evangelho, não importa o quanto se busque refinar os critérios. Os próprios evangelhos são expressões narrativas mais ou menos orgânicas do querigma ou pregação original, e é impossível separar os fatos históricos brutos de sua intenção evangelizadora. Ou aceitamos que os primeiros seguidores de Jesus tinham algum interesse na, e alguma memória da, figura histórica de Jesus quando começaram a proclamar a boa nova sobre ele, ou é melhor abandonar inteiramente o processo e adotar a posição de Rudolf Bultmann de que não temos condições de saber nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus, uma vez que as primeiras fontes cristãs não demonstram nenhum interesse sobre isso, sendo ademais fragmentárias e com freqüência de natureza lendária.

Em reação ao ceticismo histórico de seu professor e mentor, Ernst Käsemann tratou da questão de modo bastante vigoroso num artigo programático publicado em 1953. O Senhor glorificado, escreve ele, "engoliu quase inteiramente a imagem do Senhor terrestre, e mesmo assim a comunidade manteve a identidade existente entre o primeiro e o segundo... A questão do Jesus histórico é, em sua formulação legítima, a continuidade do Evangelho dentro da descontinuidade dos tempos e das variações do querigma".⁷ Para Käsemann, era importante que a continuidade entre a primeira pregação cristã sobre Jesus e a pregação do próprio Jesus pudesse ser estabelecida em bases críticas, uma vez que, em sua visão, esta era a natureza da fé cristã desde o princípio. A primeira pregação insistia no fato de que foi Jesus quem morreu e ressuscitou, e foi essa convicção que levou ao desenvolvimento de uma narrativa sobre ele que não fazia distinção entre o Senhor terrestre e o celeste. Em decorrência deste interesse evangelizador envolvido na questão do Jesus histórico, tem-se observado uma forte tendência a ver os evangelhos como documentos únicos que não podem ser comparados a outros tipos de narrativas biográficas, uma posição que Crossan estranhamente também parece encampar. Nem Käsemann, nem Gunther Bornkamm, outro influente representante da nova busca por Jesus que se seguiu imediatamente à obra de Bultmann, estavam interessados nos aspectos locais da mensagem (querigma) de Jesus tal como ela se encontra representada nas narrativas evangélicas. Da perspectiva deles, o importante era o mero fato da existência de Jesus, e não os detalhes históricos sobre a sua vida ou carreira. Neste sentido, eles alegavam que o caráter único da mensagem teria dado lugar a uma resposta literária também única.

Todavia, este julgamento se baseia em fundamentos teológicos e não histórico-literários, e discussões mais recentes situaram esses primeiros escritos cristãos no contexto mais amplo do gênero biográfico-encomiástico da Antiguidade greco-romana, que traz em seu bojo tanto uma intenção histórica quanto propagandística. Assim, as narrativas evangélicas podem e devem ser criticamente avaliadas em termos dos retratos que oferecem de Jesus e seu ministério, ao mesmo tempo em que é necessário manter-se aberto a outras perspectivas que elas apresentam, assim como para as modificações que estas podem ter imprimido na intenção histórica geral .⁸ Para falar concretamente nos termos do presente estudo, quando os evangelistas retratam situações galiléias da vida de Jesus, faz-se necessário perguntar se estas meramente servem a interesses posteriores ou se também não refletem julgamentos sobre o Jesus histórico, uma vez que não é possível excluir a priori esta última hipótese das intenções dos evangelistas.

Estudos comparativos recentes acerca do gênero dos evangelhos indicam que eles de fato exibem uma semelhança de família com outras Vidas antigas, todas as quais reproduzem uma biografia-base tripartite, composta de um começo (arché), que fala brevemente das origens do tema ou objeto, um meio (akmé), concentrado no ponto mais alto da vida pública do biografado, e um fim (telos), que relata sua saída de cena, possivelmente acompanhado de uma justificação de seu legado.⁹ Todos os evangelhos se enquadram facilmente nessa estrutura básica, que, ademais, deixava espaço para numerosos acréscimos, expansões e adaptações, mas cujo caráter de fundo é perfeitamente reconhecível. Traços desse interesse biográfico em Jesus podem ser detectados também em outros escritos cristãos além dos evangelhos, como os papiros de Qumrã (Lc 3,3; 4,1; 7,1; 10,13-15; 13,24), os Atos dos Apóstolos (10,37-41) e as Epístolas de Paulo (1Cor 11,23-26; 15,2-4; Gl 4,4; Rm 1,1-2). Isso é igualmente verdadeiro em relação ao breve relato de Josefo sobre Jesus quando desnudado das interpolações cristãs posteriores (AJ 18, 63ss). A função socioretórica dos aspectos encomiásticos (de louvor) e propagandísticos (apologéticos) dessas obras precisa ser levada em conta na avaliação de sua intenção histórica, o que também vale em relação a outras obras antigas, inclusive a própria Autobiografia de Josefo.¹⁰ Além disso, no caso dos evangelhos, o papel que tinha a iniciativa biográfica dentro da matriz judaica também precisa ser considerado. Neste sentido, os livros atribuídos aos grandes profetas de Israel – Isaías, Jeremias e Ezequiel, por exemplo – combinam experiências pessoais e declarações oraculares para compor uma mensagem única. Por esta mesma razão as circunstâncias históricas da vida do profeta se tornam particularmente importantes num contexto judaico.

Assim, mesmo quando todas as considerações pertinentes do ponto de vista literário foram feitas, fazemos ainda pouca justiça às intenções dos evangelistas quando não levamos a sério esta tendência historicizante do trabalho deles. Hoje, seus relatos são descartados muito precipitadamente como posteriores e não confiáveis em troca de uma narrativa muito diversa de nossa própria autoria, e que com freqüência tem muito pouco a ver com situações da vida real na Galiléia do século I. Ao reconhecer a intenção histórica dos autores do evangelho, deveríamos, pelo menos inicialmente, demonstrar maior confiança nas muitas pistas que eles deixaram sobre o desenvolvimento concreto do ministério de Jesus. Mesmo quando o conhecimento real que demonstram ter da Galiléia parece primário ou não baseado na experiência pessoal, como indivíduos mediterrâneos do século I eles estão muito mais inteirados de algumas situações, como as tensões entre cidade e campo e as relações étnicas na Antiguidade, do que nós jamais poderíamos estar, olhando de fora* na perspectiva em que olhamos.

A Galiléia e Jesus

Entretanto, o historiador moderno de Jesus deve chegar à discussão equipado com mais do que um entendimento crítico dos evangelhos. A mudança de ênfase do universal para o local nos estudos modernos sobre Jesus colocou o foco sobre a Galiléia de uma forma que não era nada óbvia há 25 anos, quando o professor Martin Hengel, da Universidade de Tübingen, me sugeriu que um estudo da Galiléia poderia representar uma importante contribuição para o nosso entendimento do Cristianismo Primitivo.¹¹ Pouco havia sido escrito sobre o assunto, e mesmo os relatos históricos-padrão sobre o período simplesmente repetiam certos estereótipos sobre a Galiléia e os Galileus, que já se encontravam nas fontes antigas. Logo me dei conta dos perigos potenciais de tratar somente do período correspondente ao ministério de Jesus durante o reino de Herodes Antipas. Além de ter de lidar com a vasta quantidade de literatura secundária que trata da confiabilidade histórica dos evangelhos, havia a óbvia tentação de criar uma imagem da Galiléia para servir como pano de fundo perfeito para o papel particular que os diferentes estudiosos quisessem atribuir a Jesus. Na época, as atribuições iam da representação de um revolucionário violento a um piedoso hasid, e desde então a lista aumentou consideravelmente, mais notavelmente pelo aparecimento da imagem de Jesus como filósofo cínico.¹² Talvez o exemplo mais chocante dessa manipulação das evidências tenha sido a alegação feita por Walter Grundmann num estudo de 1941, de que a Galiléia era pagã (heidnisch) e de que com uma probabilidade ainda maior Jesus não era judeu.¹³

Portanto, em minha opinião o que se fazia necessário era um estudo da Galiléia que não se concentrasse primariamente em Jesus e seu ministério galileu, mas que buscasse determinar a singularidade da região adotando uma visão de longo alcance, que se estendesse de Alexandre, o Grande, a Adriano, cobrindo um período de 400 anos durante o qual sobrevieram muitas mudanças. Apenas desse modo seria possível evitar o perigo de um entendimento distorcido, ainda que inconsciente, de Jesus e de seu ministério. A imagem da Galiléia que emergiu nessa primeira tentativa teve de ser revista mais de uma vez nos anos subseqüentes, à medida que novas evidências começavam a emergir do intensivo trabalho arqueológico realizado na região. Sítios-chave, como Séforis, foram descobertos, e levantamentos de alcance regional ajudaram a identificar as mudanças nos padrões de povoamento e identidade étnica ao longo do tempo.

Qual era a ecologia da Galiléia em que Jesus vivia e como ele se relacionava com ela? Meu segundo livro tinha a intenção de responder essa questão, mas somente com ele concluído percebi que não tinha integrado suficientemente a abordagem literária dos evangelhos com as investigações de natureza histórica expostas na segunda parte, como indicava o subtítulo.¹⁴ O presente estudo apresenta-se como um esforço renovado de exploração da questão da Galiléia e de Jesus, de uma perspectiva diferente. Desde o princípio é importante estar consciente de que a Galiléia não foi o único cenário da vida e do ministério de Jesus. Alguns estudos recentes tenderam a minimizar ou mesmo a ignorar as suas raízes judaicas e o ministério que nelas se fundava, baseando-se na percepção de uma oposição entre a Galiléia e a Judéia/Jerusalém, e ignorando no processo as pistas deixadas pelo Quarto Evangelho, que retrata Jesus como companheiro de João Batista no deserto da Judéia, concentrando seu ministério em Jerusalém, com a Galiléia aparecendo como um lugar de retiro potencial (Jo 4,1-2.45).¹⁵ A plausibilidade histórica dessas ligações e o papel desempenhado por Jesus no contexto das variações ocorridas nas identidades regionais judaicas do século I aparecerão mais de uma vez ao longo deste estudo.

Outra questão que deve comparecer como altamente significativa neste estudo foi levantada recentemente, de modo estimulante, pelo estudioso norueguês Halvor Moxnes.¹⁶ A nosso ver com acerto ele diz que, ao discutir a identidade de Jesus, muitos estudos têm se concentrado no seu conceito único de tempo, ignorando a importância do lugar no estabelecimento e na manutenção da identidade. As reflexões de Moxnes se baseiam numa discussão relativamente recente no campo das ciências sociais a respeito do significado do lugar, e mais especificamente da perda do sentido de lugar na modernidade, concebido como algo além do palco onde o sujeito atua na realização das tarefas em um mundo globalizado, regido pelo capitalismo de mercado. Tempo e progresso tornam-se sinônimos, e a pessoa bem-sucedida é vista como não ligada a nenhum lugar particular, mas antes como cidadã do mundo. Uma imagem de Jesus relacionada a um lugar específico é de pouca significância numa cultura como essa. Assim, não surpreende que um interesse por Jesus em seu próprio lugar tenha surgido, como nota Moxnes com grande astúcia, em contextos terceiro-mundistas, onde pessoas que, com freqüência, são vítimas da exploração econômica do Ocidente, encontram nas histórias de Jesus e no engajamento deste em prol dos marginalizados de seu próprio lugar um motivo poderoso de resistência à opressão.¹⁷

Uma vez que assimilamos a idéia de lugar com relação a Jesus e seu ministério é importante notar que não se trata de um conceito unívoco. Para muitas pessoas, atualmente, possuir um sentido de lugar é uma proteção contra o que percebem como a instabilidade e a incerteza da vida moderna. Desde esse ponto de vista, o lugar se torna um conceito estático, imóvel, com limites rígidos e identidade imutável. Esta atitude pode funcionar tanto no plano pessoal quanto nacional, baseando políticas nacionalistas bem agressivas. Em contraste com esse entendimento, Moxnes sugere um sentido fluido de lugar como construção humana que está sendo constantemente negociada e redesenhada, à medida que diferentes grupos de interesse lutam pelo controle das estruturas sociais que definem um lugar em particular. Assim, os lugares e suas identidades devem ser vistos como realidades indefinidas, contestadas e múltiplas. Ao invés de ver os lugares como recintos fechados, escreve Moxnes, deveríamos ver suas identidades como algo que se forma na interação com o mundo externo e os outros lugares.¹⁸ O estudo de Moxnes segue em frente abordando o ministério de Jesus na Galiléia de uma perspectiva espacial tanto no plano micro, como algo que contribui para a redefinição do espaço doméstico, quanto no macro, como algo que propõe uma identidade regional alternativa àquela que era definida e controlada pela elite governante herodiana. Teremos oportunidade de discutir os achados de Moxnes nesse campo ao longo de diversos itens do presente estudo.

Quando se olha para a história moderna dos estudos sobre a Galiléia à luz das reflexões de Moxnes, torna-se claro que a região tem sido construída de diversas maneiras por diversos grupos de interesse nos últimos 200 anos. Estes interesses não necessariamente desqualificam os resultados obtidos, tendo em vista que da perspectiva do lugar considerado como um construto humano e social, e não como uma entidade estática e naturalmente dada, é possível, e até provável, que múltiplas Galiléias tenham coexistido na Antiguidade. Essa pluralidade nos remete àquilo que diz o historiador das Religiões, Jonathan Z. Smith: Os seres humanos não estão simplesmente num lugar; são eles que o produzem.¹⁹ Como a Galiléia de Jesus foi construída no período moderno, e a quais interesses serviram estas diferentes representações?

A Galiléia enquanto tal não figura nas Vidas de Jesus do século XIX, porque ela simplesmente não importava para seus autores, a não ser como um instrumento de flagelação contra a Judéia e o judaísmo. O estudioso francês Ernest Renan é um exemplo fascinante e perturbador dessa tendência. Ele escreveu a sua celebrada Vie de Jesus em 1863, enquanto estava envolvido num projeto patrocinado pelo governo

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