Na morada das palavras
By Rubem Alves
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Na morada das palavras - Rubem Alves
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Sumário
PORÃO
Os super-heróis
O rei, o guru e o burro[*]
As laranjas
Os saberes de cada um
Sobre rosas, formigas e tamanduás
O pastor, as ovelhas, os lobos e os tigres
BIBLIOTECA
As rãs, o pintassilgo e a coruja
Borboletas e morcegos
Sobre a morte e o morrer
Gandhi
O presépio
MEU CANTO
A beleza dos pássaros em voo...
O pequeno barco de velas brancas
Você tem um furúnculo?
O poder do que não existe
Por que não me mudo pra Bahia
JARDIM
A solidão amiga
Os olhos de Camila[*]
As contas de vidro e o fio de nylon[*]
A alegria da música
QUARTO DAS CRIANÇAS
O menininho
A Rafaela e as estrelas
Memórias da infância
SOBRE O AUTOR
OUTROS LIVROS DE RUBEM ALVES
REDES SOCIAIS
Os super-heróis
Lá fora o gelo cobria tudo. O frio era tanto que as cachoeiras haviam-se transformado em esculturas de gelo. Não havia o que fazer fora do pequeno apartamento. A diversão era ver os desenhos na televisão, com minha filha. Entre eles, os desenhos dos Super-Heróis
– o Batman, o Super-Homem, a Mulher Maravilha, entre outros. Na Sala da Justiça
, eles olhavam as telas de televisão, que vigiavam os bandidos em suas ações criminosas. Bastava que um bandido cometesse um crime para que os Super-Heróis saíssem velozes como raios, para derrotá-los com murros de força invencível. Todos os desenhos eram de uma assombrosa mesmice.
Mas houve um que tinha um script diferente. Os heróis estavam reunidos na Sala da Justiça
. Todas as televisões ligadas. Mas não havia nenhum crime sendo cometido, nenhum bandido em ação! Ah! Que felicidade! Um dia de paz! Os heróis poderiam, finalmente, descansar de lutar e de dar murros! Dar murros: que coisa mais besta! Sem crimes e bandidos, poderiam se dedicar aos prazeres da vida! O prazer do amor! Quem diria! O Batman de mãos dadas com a Mulher Maravilha, recitando um poema apaixonado! E o Super-Homem, numa poltrona, lendo uma obra de Shakespeare! Que nada! Os Super-Heróis, sem ter bandidos para combater, ficaram nervosos. Imaginem São Jorge: por séculos, diariamente, lutando com o Dragão. É só isso que ele sabe fazer. Pois, num belo dia, ao se dirigir à caverna do Dragão para a luta diária – surpresa! Milagre! O feitiço fora quebrado depois de mil anos. O Dragão voltara a ser a linda donzela que fora antes! Agora, em vez de soltar fogo pelas ventas, abria seus braços sensualmente ao santo. Que é que fez São Jorge? Tirou a armadura e partiu para o amor? Não. Teve um ataque de pânico tão grande que sua lança, sempre em riste, curvou-se como macarrão cozido... Pois é assim: quem foi feito para ser herói não sabe fazer amor. Foi o que aconteceu com os Super-Heróis. O Super-Homem se pôs a tamborilar numa mesa com os seus dedos, nervosamente. O Batman, a andar de um lado para outro, como um leão enjaulado. A Mulher Maravilha, a roer as unhas, com o perigo de ter o mesmo destino da Vênus de Milo, que ficou sem braços em virtude de não ter conseguido controlar esse detestável hábito...
Perdão pelo humor, quando o assunto é sério. Mas o que é o humor se não o traseiro grotesco da fachada solene? Como no conto de Andersen, o menino que gritou que o rei estava nu, quando todo mundo louvava a beleza de suas roupas.
Brinco com uma arte chamada psicanálise. Para a psicanálise, não há acidentes na vida mental. Se as imagens dos Super-Heróis
têm sobrevivido por décadas, produzindo fenômenos de literatura e de bilheteria, é porque elas representam, exprimem, dão visibilidade às imagens inconscientes que formam a alma de um povo. Super-Heróis
: indivíduos solitários, fortes, corajosos, sempre lutando pela verdade e pela justiça: eles moram na alma do povo norte-americano. São violentos. Mas sua violência é necessária para a paz dos cidadãos indefesos. Por isso ela é uma violência bonita. Está a serviço do bem. Os mocinhos
– John Wayne, Clint Eastwood, Rocky, Rambo – são todos versões românticas do herói que usa sua espada para derrotar o dragão da maldade.
Aqueles que têm certezas sobre a justiça das suas ações não têm dores de consciência ao usar a força. Ficou célebre a afirmação do presidente Theodore Roosevelt: Speak softly, carry a big stick in your hands: you will go far! (Fale brandamente, tenha um porrete grande nas suas mãos: você irá longe!
). Na sua crueza, essa afirmação soa como uma justificativa da truculência da política das canhoneiras e das intervenções militares que caracterizou a política externa americana. Dessa forma cínica, entretanto, ela é incompatível com a imagem do herói bonito. Todo povo quer um herói que seja forte. Mas que seja belo também! Quem fala com brandura e usa o porrete é tudo, menos belo. É forte e desprezível. O imaginário religioso norte-americano, profundamente enraizado em imagens bíblicas, não poderia aceitar essa imagem de anti-herói, na sua crueza. Mas o secretário de Estado Reuben Clark disse algo que justificou todos os usos da força: ele disse que a política externa americana estava sempre baseada na verdade e na justiça. Também o Cristo Pantocrator usa a espada. Mas ela é usada sempre na defesa dos mansos. A imagem do herói justo está preservada.
Um amigo que vê televisão mais do que eu me disse que, logo depois do ataque contra as duas torres, houve, em Washington, uma cerimônia ecumênica nacional. Certo. Quando um povo é batido pela tragédia é próprio que se busquem os templos. O povo estava perplexo. Nunca, em toda a sua história, algo semelhante acontecera. O povo queria ouvir a voz de Deus. Se Deus falasse como falam os homens, que conselho Ele daria? Fiquei a imaginar. Se ali estivesse um verdadeiro profeta, qual seria o texto bíblico que ele escolheria? Lembrei-me de um, do Velho Testamento: A resposta branda desvia o furor, mas a resposta de fúria aumenta a ira
. Veio-me, a seguir, uma outra alternativa do Novo Testamento: Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber...
. Ou então: Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem...
.
Pelo que está acontecendo, entretanto, parece que esses textos não foram lembrados. É compreensível. É preciso preservar a imagem do herói forte. O herói forte usa sempre a força. Heróis que não sabem usar a força não capturam o imaginário popular. Não são heróis. São Francisco, Martin Luther King Jr., Gandhi, a não violência: essas são imagens fracas.
O Batman, o Super-Homem e a Mulher Maravilha devem estar contentes. Há criminosos à solta. Há ações heroicas a serem realizadas. A guerra é mais excitante, é mais espetáculo que a não violência. A paz é monótona. Sossega, Super-Homem: você não vai ter que ler Shakespeare! Sossega, Batman: você não vai ter que recitar poemas para a Mulher Maravilha! Sossega, Mulher Maravilha: você não vai ter o destino da Vênus de Milo...
O rei, o guru e o burro
Viveu, há muitos e muitos anos, num distante país, um homem agraciado pelos deuses com dons extraordinários. Ele tinha o poder de, pelo simples uso da palavra, operar transformações mágicas nas pessoas que o procuravam: aqueles que entravam em sua casa de cabeças baixas e tristes saíam com as cabeças erguidas e sorridentes. A ele vinham pessoas de todos os lugares, trazendo seus sofrimentos, na esperança de ouvir, da boca do guru, conselhos sábios e práticos que lhes indicassem os rumos a seguir e as coisas a fazer a fim de livrarem-se dos seus sofrimentos. Desejo mais justo não existe, e é precisamente isso o que todos nós queremos. Queremos ficar curados, queremos arrancar o espinho da carne, queremos parar de sofrer. É isso que esperam todos aqueles que fazem peregrinações aos lugares sagrados, onde virgens e santos aparecem de vez em quando. Pena é que apareçam tão raramente, em lugares tão distantes. Melhor seria que aparecessem no coração das pessoas, lugar do amor. Bastaria, então, um simples gemido, e logo sairiam de sua invisibilidade, porque, sendo santos, eles estão sempre em todos os lugares, só que invisíveis aos nossos olhos, mas sensíveis ao coração. Pois é, como eu dizia, o que desejam todos os romeiros que buscam os lugares onde virgens e santos aparecem é o milagre de se verem curados do câncer, da cegueira, do aleijão, da impotência, da feiura, da solidão, da pobreza.
Não existe relato de que ele jamais tenha dado, a qualquer dessas pessoas sofredoras, conselhos sobre o que fazer para se livrarem dos seus sofrimentos. Nem consta que, jamais, cegos, paralíticos, aleijados ou doentes tenham sido curados de seus males. E, no entanto, todos saíam diferentes.
O guru os ouvia em silêncio profundo. Sua atenção desatenta tudo anotava. Não estranhem que eu fale sobre atenção desatenta – é preciso estar meio distraído para ver a verdade. Porque ela, a verdade, diferente dos santos, aparece sempre no lugar onde estamos, mas não onde a atenção está concentrada. Ela é sempre vista pelos cantos dos olhos, com olhar distraído, nas sombras, nos silêncios, nas indecisões gaguejantes. Depois de ouvir, ele falava. Aqueles que tiveram a felicidade de presenciar esse evento relatam que seu rosto se iluminava e que ele não falava nada diferente