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A Maçã e outros sabores
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A Maçã e outros sabores
Ebook89 pages1 hour

A Maçã e outros sabores

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"A memória é poder estranho. Ela guarda coisas nas suas gavetas, coisas que nem sabemos que existem. Não adianta tentar abrir as gavetas. Elas não abrem. Elas só abrem quando querem. Pois assim aconteceu. Uma gaveta se abriu e dentro dela havia uma maçã vermelha, embrulhada num papel de seda amarelo. Era minha primeira maçã."
O que transforma o mundo é o jeito que olhamos para ele. Ao contar o jeito que leu uma notícia de jornal, como ouviu uma frase ou como viveu determinada experiência, Rubem Alves nos fala do sabor que sentiu.
Ele traduz seu universo em palavras e, ao ler suas crônicas, uma alquimia acontece dentro da gente: olhamos de outro jeito o que sempre esteve ali ou descobrimos sensações e sentimentos esquecidos (escondidos?) em nós mesmos.
Atreva-se a esta degustação, saboreie esse livro! - Papirus Editora
LanguagePortuguês
Release dateDec 31, 2012
ISBN9788530809812
A Maçã e outros sabores

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    A Maçã e outros sabores - Rubem Alves

    Alves

    Sumário

    A maçã

    A morte dos heróis

    Preferiram morrer

    Sobre a bonificação

    Carta aos filhos de pais velhos

    Os dois olhos

    Quero um brinquedo!

    A caixa de brinquedos

    Alegria

    Prazer

    As ideias loucas...

    Dentaduras & Cia.

    A Barbie

    A decolagem

    Que seria de nós sem o socorro do que não existe?

    Solidão pequena, solidão grande

    Sobre a interpretação

    Hora de esquecer

    A melodia que não havia...

    O brilho da eternidade no olhar

    O mar de Maria

    Sobre o autor

    Outros livros de Rubem Alves

    Redes sociais

    A maçã

    Faz muito tempo, eu era professor visitante no estado do Maine, na ponta norte dos Estados Unidos, junto ao mar. Era outubro. Outubro é outono. O outono é quando o vento frio chega e sopra, endurecendo as orelhas, avermelhando o nariz, e as folhas, tocadas pela geada, entram em agonia. Felizes aquelas folhas! Como elas morrem tranquilas! Como elas morrem belas! O outono por aquelas bandas é a coisa mais bonita que vi na minha vida. Tão bonito que dói. Dói porque é uma beleza que diz adeus. As folhas das árvores transfiguram-se. Explodem em cores que estavam escondidas. Os bosques não têm fim... Os bosques são belos, sombrios, fundos. Mas há muitas milhas a andar e muitas promessas a guardar antes de se poder dormir. Sim, antes de se poder dormir... – assim escreveu Robert Frost, que viveu muitos outonos. As folhas de algumas árvores ficam cor de gema de ovo. Outras transformam-se em fogo. É o último orgasmo da natureza. Os poemas outonais de Frost têm sempre uma pitada de nostalgia. Porque ele se via partindo, com a natureza. Traduzi um desses poemas. Tão perfeito em inglês, tão pobre na minha tradução... Nunca fui bom em rimas e, para Frost, a rima é o que há de divertido na poesia. Fiz o melhor que pude.

    Oh! Silenciosa e tranquila manhã de outono!

    Tuas folhas dentro em pouco vão cair.

    Se amanhã o vento soprar forte

    Todas juntas vão partir.

    Piam pássaros na floresta

    anunciando que amanhã se irão, de repente.

    Oh! Silenciosa tranquila manhã de outono,

    faz as horas passarem lentamente.

    Meu coração compreenderá se o enganares;

    engana-me com teus falares:

    faz o dia parecer menos curto.

    Soltando só uma folha pela manhã.

    A outra, que só ao meio dia se vá.

    Uma de nossas árvores,

    outra de acolá.

    Retarda o sol com suave bruma,

    Encanta os campos com sua verde espuma.

    Devagar! Devagar!

    Por amor às uvas amedrontadas,

    já queimadas de geada:

    seus bagos poderão gelar.

    Devagar! Devagar!

    Por amor às uvas amedrontadas,

    desamparadas, ao longo da estrada...

    Depois de terminada a tradução, dei-me conta de que a palavra inglesa para geada, frost, é o nome do poeta... Ele era a uva amedrontada, desamparada, ao longo da estrada.

    Eu costumava reunir os meus alunos no meu apartamento para combater a solidão noturna. Lá se janta às 17 horas e se vai para a cama muito cedo. As luzes vão logo se apagando nas casas espalhadas no meio das árvores. Dando aulas no meu apartamento eu trazia alegria para as minhas noites. Lá estavam eles, uns 15, assentados em roda, no chão, nas poltronas. No meio, uma pequena mesa com uma cesta de maçãs. O outono é o tempo das maçãs. O cheiro das maçãs se mistura com o cheiro das folhas que cobrem o chão. Coisa gostosa era ir aos pequenos sítios para comprar suco de maçã. As maçãs eram retiradas de montanhas de maçãs e moídas na hora...

    Eu falava sobre palavras, sobre poesia. E disse uma coisa que eles não entenderam: Amamos não a coisa, mas as palavras que colamos nelas.... Ah! Como são perigosas as palavras! Milan Kundera nos advertiu dizendo que o amor nasce quando associamos o rosto da pessoa a uma metáfora poética. Amamos aquele rosto por ser ele o suporte de uma metáfora. É a metáfora que amamos. Se a metáfora se for, vai-se também o amor. Ela emigra, em busca de um outro rosto...

    Um jovem sorriu para mim, um sorriso de amizade e desafio; tomou uma maçã, mordeu-a e disse: Eu amo maçãs.... E ficou em silêncio. Eu entendi. Ele estava me dizendo: Eu amo maçãs. Maçãs, simplesmente, sem metáforas; sua forma, seu cheiro, sua cor, seu gosto. As maçãs, elas mesmas.... Eu tomei outra maçã, mordi-a e disse: Eu também amo maçãs... Só que você nunca comerá a maçã que eu estou comendo, ainda que você a morda no mesmo lugar onde eu a mordi, e eu nunca comerei a maçã que você está comendo, ainda que eu a morda no mesmo lugar em que você a mordeu....

    Expliquei. Aquelas maçãs estavam cheias de outono, de folhas amarelas, de folhas vermelhas, de geada, de cheiro de folhas no chão, de nostalgia. Dentro de cada maçã havia um mundo, o mundo deles. Comendo a maçã, eles comiam também o mundo que havia nela. As maçãs eram sacramentos... As minhas maçãs eram sacramentos de um outro mundo, ainda que estivessem na mesma cesta...

    A memória é poder estranho. Ela guarda coisas nas suas gavetas, coisas que nem sabemos que existem. Não adianta tentar abrir as gavetas. Elas não abrem. Elas só abrem quando querem. Pois assim aconteceu. Uma gaveta se abriu e dentro dela havia uma maçã vermelha, embrulhada num papel de seda amarelo. Era minha primeira maçã. Eu era um menino pequeno. Véspera de Natal. Meu pai estava viajando. Voltaria a tempo? Voltou. Trouxe-me presentes. Não me lembro de nenhum deles. Mas ele me trouxe uma maçã embrulhada em papel de seda amarelo. Naquele tempo, naquele lugar, uma maçã era uma fruta encantada, que crescia muito longe, em outros países. Atravessara mares para chegar até as minhas mãos. Em Dores (era assim que Boa Esperança era chamada, naqueles tempos...) não cresciam maçãs. Havia mangas, jabuticabas, bananas, laranjas, mexericas, pitangas. E também os marolos, frutas grosseiras dos cerrados, de cheiro forte, com que se faziam licores.

    Mas eu ganhei uma maçã. Eu era o único menino em Dores a ter uma maçã. Se eu comesse a maçã, deixaria de ser o menino que tinha uma maçã. Eu voltaria a ser como todos os meninos de Dores que haviam ganhado bolas e caminhõezinhos.

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