A Festa de Maria
By Rubem Alves
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About this ebook
A alegria é um pássaro que só vem quando quer. Ela é livre. O máximo que podemos fazer é quebrar todas as gaiolas e cantar uma canção de amor, na esperança de que ela nos ouça. Oração é o nome que se dá a esta canção para invocar a alegria. (Rubem Alves) - Papirus Editora
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A Festa de Maria - Rubem Alves
A festa de Maria
Rubem Alves
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Salve Maria, cheia de graça,
esposa, mãe, cozinheira.
Babette da meninada pobre...
Rubem Alves
Sumário
APERITIVOS
O olhar adulto
O nome
Esquecer
SOPAS
Meu tipo inesquecível
Beleza
Poça de água suja
MASSAS
A solidão
Suicídio
Explicação
CARNES
Máscaras
Pior que a paixão
Conjugal
BEBIDAS
A mentira da Maria
Oração
Promessas
SOBREMESAS
Aos prefeitos, vereadores etc.
Viva o anarquismo!
SOBRE O AUTOR
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CRÉDITOS
O olhar adulto
Foi ele mesmo quem me contou, como confissão de cegueira, dando depois permissão para que eu relatasse o milagre desde que não revelasse o santo. Médico, chegou a seu consultório com seus olhos perfeitos e a cabeça cheia de pensamentos. Eram pensamentos graves, cirurgias, hospitais, e os doentes o aguardavam na sala de espera.
Entrou o primeiro paciente que se submeteu mansamente à apalpação médica. Terminada a consulta, escrita a receita, no ato de despedida ele fez um elogio: Doutor, que lindas são as orquídeas na sua sala de espera!
.
Meu amigo sorriu embaraçado, com vergonha de dizer que não havia notado orquídea alguma na sala de espera e que, portanto, nada sabia da beleza que o doente notara. Teve vergonha de revelar a sua cegueira. Entrou o segundo paciente. Ao final da consulta, sem conseguir conter o que sentia, observou: São maravilhosas as orquídeas na sua sala de espera, doutor!
. Novamente o sorriso amarelo, sem poder dizer o que não sabia sobre as orquídeas que não havia visto.
Veio o terceiro paciente, e a coisa se repetiu do mesmo jeito. Aí o doutor deu uma desculpa, saiu da sala, e foi ver as orquídeas que o jardineiro colocara na sala de espera. Eram, de fato, lindas. Mas aí veio o agravante, pois o paciente, não satisfeito com a humilhação imposta ao doutor cego, observou que, na semana anterior, a árvore dentro da sala de consulta, plantada num vaso imenso, num canto, não era a mesma que ali estava, naquele dia. Mas o doutor cego de olhos perfeitos não notara a presença da árvore naquele dia nem a presença da árvore na semana anterior...
Ah! Você se espanta que tal cegueira possa existir! Mas eu lhe garanto que é assim que funcionam os olhos dos adultos em geral.
Lá vão pelo caminho a mãe e a criança, que vai sendo arrastada pelo braço – segurar pelo braço é mais eficiente que segurar pela mão. Vão os dois pelo mesmo caminho, mas não vão pelo mesmo caminho. Blake dizia que a árvore que o tolo vê não é a mesma árvore que o sábio vê. Pois eu digo que o caminho por que anda a mãe não é o mesmo caminho por que anda a criança.
Os olhos da criança vão como borboletas, pulando de coisa em coisa, para cima, para baixo, para os lados, é uma casca de cigarra num tronco de árvore, quer parar para pegar, a mãe lhe dá um puxão, a criança continua, logo adiante vê o curiosíssimo espetáculo de dois cachorros num estranho brinquedo, um cavalgando o outro, quer que a mãe também veja, com certeza ela vai achar divertido, mas ela, ao invés de rir, fica brava e dá um puxão mais forte, aí a criança vê uma mosca azul flutuando inexplicavelmente no ar, que coisa mais estranha, que cor mais bonita, tenta pegar a mosca, mas ela foge, seus olhos batem, então, numa amêndoa no chão e a criança vira jogador de futebol, vai chutando a amêndoa, depois é uma vagem seca de flamboyant pedindo para ser chacoalhada, assim vai a criança, à procura dos que moram em todos os caminhos, que divertido é andar, pena que a mãe não saiba andar por não ter os olhos que saibam brincar, ela tem muita pressa, é preciso chegar, há coisas urgentes a fazer, seu pensamento está nas obrigações de dona de casa, por isso vai dando safanões nervosos na criança, se ela conseguisse ver e brincar com os brinquedos que moram no caminho, ela não precisaria fazer análise...
A mãe caminha com passos resolutos, adultos, de quem sabe o que quer, olhando para frente e para o chão. Olhando para o chão ela procura as pedras no meio do caminho, não por amor ao Drummond, mas para não dar topadas, e procura também as poças d’água, não porque tenha se comovido com o lindo desenho do Escher de nome Poça de água, uma poça de água suja na qual se refletem o céu azul e os ramos verdes dos pinheiros, ela procura as poças para não sujar o sapato. A pedra do Drummond e a poça de água suja do Escher os adultos não veem, só as crianças e os artistas...
A mãe não nasceu assim. Pequenina, seus olhos eram iguais aos do filho que ela arrasta agora. Eram olhos vagabundos, brincalhões, que olhavam as coisas para brincar com elas. As coisas vistas são gostosas, para ser brincadas. E é por isso que os nenezinhos têm este estranho costume de botar na boca tudo o que veem, dizendo que tudo é gostoso, tudo é para ser comido, tudo é para ser colocado dentro do corpo. O que os olhos desejam, realmente, é comer o que veem. Assim dizia Neruda, que confessava ser capaz de comer as montanhas e beber os mares. Os olhos nascem brincalhões e vagabundos – veem pelo puro prazer de ver, coisa que, vez por outra, aparece ainda nos adultos no prazer de