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Retórica e Farsa: 30 Anos de Neoliberalismo no Brasil
Retórica e Farsa: 30 Anos de Neoliberalismo no Brasil
Retórica e Farsa: 30 Anos de Neoliberalismo no Brasil
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Retórica e Farsa: 30 Anos de Neoliberalismo no Brasil

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Em Retórica e farsa 30 anos de neoliberalismo no Brasil, a autora, de forma quase passional, reapresenta ao leitor a grande História, ao mostrar o Brasil no contexto das transformações sociais do século XX e das disputas geopolíticas globais após a Guerra Fria. O livro possui uma acentuada dimensão pública, atendendo a uma demanda cada vez maior por conhecer a história sem aderir aos modismos editoriais. Cumpre um dever crítico ao desconstruir as verdades veiculadas pela mídia corporativa sobre a economia brasileira e sedimentadas no senso comum, contrapondo um discurso racional, baseado no exame das fontes, da bibliografia existente e da experiência social. Cumpre o dever cívico de informar o cidadão e manter a luta por seus direitos e, finalmente, o dever ético de pensar os valores e normas da nossa sociedade.
LanguagePortuguês
Release dateDec 14, 2018
ISBN9788546214068
Retórica e Farsa: 30 Anos de Neoliberalismo no Brasil

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    Para mim que vislumbro entender um pouco melhor o contexto político e econômico da história recente do Brasil, valeu a pena, mas, fica claro e como já era de se esperar somente pelo título, que se trata de uma versão da história progressista, que inevitavelmente vai confrontar com as versões desta mesma história, pensando em autores(as) mais conservadores(as) e liberais. De qualquer modo para mim isso não faz diferença, aprecio entender as diversas interpretações dos fatos e tirar as minhas conclusões, formar e construir a minha opinião, esse é o meu objetivo: Formação política independente e não partidária.

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Retórica e Farsa - Christiane Vieira Laidler

2018.

Introdução

Meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte do meu tempo de vida – do início da adolescência até hoje – tenho tido consciência dos assuntos públicos, ou seja, acumulei opiniões e preconceitos sobre a época, mais como contemporâneo que como estudioso. (Eric Hobsbawm, 1995, p. 7)

A história deste livro começa com o mal-estar do golpe de 2016, com o que me parecia ser a nossa incapacidade de compreender as ameaças aos direitos que então se colocaram. Reinava absoluta a agenda de reformas que visavam à diminuição do Estado. Se em 2008 parecia que a retórica da eficiência do mercado seria definitivamente enterrada, em 2016, o que se observava era a sua hegemonia por toda a parte, e avançando sobre os governos populares da América Latina. A última grande manifestação contra o golpe parlamentar aconteceu em abril de 2017, no dia da greve geral. Depois disso, ficou claro que não haveria resistências ou movimentos de amplitude nacional. A agenda de reformas seguia seu curso quase sem obstáculos. O único limite seria a Reforma da Previdência. O que explica essa paralisia? Haveria consenso sobre as reformas previamente projetadas? Tudo indica que sim. A grande maioria dos brasileiros, de alguma forma, aprova cortes de gastos e diminuição do Estado, incluindo privatizações. Há um conjunto de fenômenos que explicam a construção dessa visão de mundo. Ela é resultado de uma narrativa que se consolidou nas últimas décadas. Uma narrativa míope e interesseira, porém, amplamente difundida no nosso cotidiano.

Decidi escrever uma interpretação que demonstre a falsidade de alguns pressupostos do consenso. Trata-se, portanto, da proposição de uma narrativa diferente do tempo atual, que mobiliza memória, pesquisa e inúmeras referências, não apenas acadêmicas. Mas o fundamental é que ela compreende o discurso e a informação como mecanismos da disputa de poder. E, portanto, que os meios de comunicação detêm um poder extraordinário, capaz de doutrinar cidadãos e subordinar o campo político, escolhendo pautas e interpretações de acordo com seus próprios interesses, que podem ser os corporativos ou os políticos em senso estrito, ligados à autopreservação como agentes principais da construção do pensamento hegemônico.

Mentiras repetidas durante anos seguidos tornam-se verdades? Quem acredita nelas? É possível falsear a realidade ou as interpretações sobre os fatos? Difícil estabelecer os limites da manipulação de visões sobre a vida real, mas é possível investigar as formas e mecanismos da construção de um senso comum compreendido como um conjunto de verdades que dificilmente são comprovadas pelos fatos da experiência vivida. E também é possível demonstrar, por meio dos fatos, a falsidade de muitas ideias estabelecidas. Muitas questões estão implicadas no fenômeno complexo que é a maneira como os indivíduos, nas sociedades contemporâneas, constroem suas visões de mundo, suas expectativas e as convicções que informam seu comportamento político.

Um fato que parece incontrastável, entretanto, é a evidente incapacidade do indivíduo contemporâneo de compreender a teia de interesses que o campo político exprime. Essa incapacidade está relacionada com a alienação, ou seja, o divórcio entre os desígnios da vida privada e as disputas coletivas, mas não só. Ela relaciona-se também com o tempo dos acontecimentos e das narrativas, isto é, a mediação acelerada e superficial das estruturas comunicacionais, que representa um efetivo obstáculo ao estabelecimento de relações permanentes entre os fatos ou à construção de determinadas estruturas e modelos estáveis a partir dos quais o indivíduo possa avaliar os fenômenos tão variados que afetam o seu dia a dia. O volume de informações que, por um lado, ameaça qualquer forma de compreensão mais profunda da ordem coletiva, impedindo o aprofundamento das análises por parte dos profissionais do jornalismo, por outro, permite a construção de narrativas interessadas por meio da seleção das informações e do enquadramento dado a elas de acordo com o interesse das grandes empresas de comunicação (Castells, 2015).

O indivíduo mergulhado nos desafios de sua existência privada será informado e conformará sua visão de mundo e suas perspectivas sob a influência do poder exercido soberanamente por essas grandes corporações, que escolhem a informação relevante e a interpretação (quase sempre única) que lhe é dada. Temos assim uma dinâmica de fatos impossível de ser apreendida e digerida, impedindo, inclusive, o estabelecimento de relações entre passado e presente de forma autônoma, uma vez que a memória se dilui rapidamente com a reposição contínua de novos fatos (mesmo que sejam sempre os mesmos em sua natureza). Essa dinâmica permite uma liberdade muito grande de escolha aos produtores da informação e da comunicação nas sociedades complexas. Eles podem direcionar, de forma circunstancial, porém profundamente refletida e estudada, as percepções e anseios da chamada opinião pública.

Trata-se de manipulação, de fabricação da verdade, ou mesmo da chamada pós-verdade. É perfeitamente razoável pensar que essas escolhas editoriais estão fundadas nos mais sólidos credos filosóficos e políticos. Pode-se até acreditar que um desses credos é a democracia e, nesse sentido, meios de comunicação devem ter a mais ampla liberdade e serem plurais. Devem existir casos de pluralismo, mas percebemos com clareza cada vez maior que o paradigma democrático deixou de fazer parte da grande imprensa brasileira. Ela apresenta-se como partido único, sem debate. O jornalismo e a reportagem são tolhidos pela agenda política. Ou seja, não apenas não há discurso plural, como tampouco há informação plural que se preste a contrapor o projeto partidário da mídia. É a expressão da contradição entre os interesses das corporações globais na atual fase do capitalismo e os interesses populares. Está bastante caracterizado no Brasil o alinhamento da grande imprensa às prescrições políticas em favor do mercado, tomadas como verdade científica, evidenciando uma incompatibilidade fundamental do capitalismo de corporações com a democracia.

Uma discussão profunda sobre a democracia não pode deixar de fora a questão da imprensa e da comunicação, poder de fato com a atribuição de produzir consensos e não apenas crítica, controles e especulação política, como seria desejável. Na tradição contemporânea, a imprensa livre cumpriu importante papel exercendo exatamente a função de crítica e controle independente das instituições. E a proliferação de publicações garantiu, desde o revolucionário século XVIII, a expressão de diferentes visões de mundo. Não por outra razão, partidos, associações, sindicatos e demais movimentos organizados têm, desde então, seus próprios órgãos de comunicação.

O cenário mudou progressivamente ao longo do século XX, com o surgimento da grande empresa de comunicação, da profissionalização de suas atividades e do papel cada vez maior dos grandes órgãos de imprensa na mobilização política dos cidadãos, com destaque para o lugar da televisão, ainda predominante no Brasil a despeito do crescimento da importância da internet. Segundo pesquisa da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), realizada pelo Ibope em 2016, 63% dos brasileiros se informam sobre o que acontece no país pela televisão. O segundo meio é a internet, apontado por 26% da amostra. Se somadas a primeira e a segunda opção dos entrevistados, a televisão passa a ser o meio de informação de 89% dos brasileiros. Sendo que 77% assistem à televisão sete dias por semana, e a Globo é a preferência de 56%, e conta com 73% da preferência quando consideradas as duas primeiras opções dos entrevistados.³ Constata-se, por meio da pesquisa, o poder de agenda e de narrativa sem paralelo concentrado na Rede Globo, de sorte que não é possível compreender a dinâmica política do país, os conflitos, sobretudo o distributivo, e a disputa de poder sem que se analise a posição dessa grande empresa de comunicação, suas relações com o Estado, seus interesses, e os recursos narrativos de mobilização social, entre os quais está a permanente e diuturna desqualificação de discursos adversários.

Elege-se uma verdade, a seguir, um batalhão de consultores e especialistas é recrutado para legitimá-la cotidianamente, sem nenhum tipo de constrangimento que os fatos possam impor. Tudo é sólido e constante, porque não há dúvida possível. O que não couber na verdade fabricada é irracionalismo. Atualmente, a desqualificação se dá pelo uso do termo populismo; nos anos 1990, de FHC, depreciava-se a oposição por falta de patriotismo. A reprovação se faz sem argumento ou substância, se limita a uma etiqueta ou adjetivo cujo significado se impõe à opinião pública pela repetição. O populismo do senso comum – bem diferente do conceito polêmico, objeto do debate acadêmico –, de tão repetido, tornou-se apenas instrumento de desqualificação amplamente reconhecido e reproduzido socialmente.

Esses recursos propiciaram a elaboração de uma agenda, no mínimo polêmica, como a atual, levada a cabo por um governo não eleito, resultante de uma conspiração parlamentar amplamente sustentada pelas corporações de comunicação. O Brasil precisava de reformas que não seriam aprovadas nas urnas, logo, as urnas podiam ser contornadas, e a agenda se impôs com rapidez sem precedentes, atropelando ritos parlamentares e sem que haja qualquer discussão política pública e aberta, uma vez que os meios de comunicação ignoram os milhares de intelectuais que se expressam por meios ainda marginais ou de pouco alcance, como a academia. Repetiu-se ad nauseam a máxima de que o país necessitava de reformas impopulares para superar a crise econômica, e recomendava-se uma transição de um governo não eleito para promover o que as urnas não aprovariam, resultando no impedimento da presidenta eleita. Portanto, não é de surpreender que a democracia tenha sido descartada no processo político e nas instituições que promovem as reformas no Brasil de hoje.

Nos últimos três anos, assistimos a uma rápida destruição de pressupostos até então aparentemente aceitos pelo conjunto da sociedade. Os direitos sociais básicos estão sob um ataque que parece não encontrar resistência organizada. O Estado, do qual se cobrava, em 2013, a responsabilidade pelos serviços sociais, foi mutilado pelo constrangimento dos próximos orçamentos e a imposição de um limite de gastos e investimentos aos governos futuros, pela nova onda de concessões de serviços, e, em curso, pela restrição à distribuição da renda por meio de benefícios de aposentadorias. Tudo isso corresponde a uma agenda de mercado que, em apenas dois anos, e por meio de um governo que não recebeu o mandato das urnas, está colocando abaixo o edifício constitucional de 1988 que, pela primeira vez no país, garantiu direitos à totalidade dos brasileiros, da cidade e do campo.

Foram dois anos de intensa preparação e ataques, envolvendo uma retórica que atribuiu a expansão dos gastos públicos relacionados àqueles direitos constitucionais ao partido que governava o país – progressista no espectro político nacional e populista na linguagem depreciativa da mídia. Além, o governo foi acusado de alta corrupção, tomado como responsável exclusivo pelo sistema político estruturado na compra de apoio parlamentar. No conjunto, a campanha midiática identificou, sem qualquer comprovação empírica, a crise econômica que se manifestava, em princípio apenas como desaceleração do crescimento, ao gasto público. O corolário foi o agravamento da crise política, com uma disputa pós-eleitoral envolvendo a ameaça permanente de impeachment, o aprofundamento da crise econômica – que passaria de estagnação à recessão – e a destituição da presidenta. No momento seguinte, a queda da arrecadação de tributos derivada da recessão, e o consequente aumento da dívida pública, ampliaram a retórica baseada na farsa, ou no cinismo, se o leitor assim o preferir, de que o déficit nas contas públicas era resultado do aumento deliberado de gastos e não das despesas obrigatórias em face da queda da arrecadação. Os jornais nunca veicularam os valores relativos ao custo do aumento da taxa básica de juros, que ampliava a recessão. Inaugurou-se a histeria por corte de gastos primários. E, em meio ao escândalo de corrupção denunciado pela operação Lava Jato, novelizado diariamente em todos os jornais como pauta principal do país, não foi difícil fazer a população associar gasto público à corrupção e a desvios. Não por outra razão foi possível criminalizar o gasto público no processo de impeachment que destituiu a presidenta eleita em 2016.

Em 2015, eu ministrava uma disciplina em um curso de pós- -graduação e os alunos da turma não sabiam bem o que eram as pedaladas fiscais. Da maneira como foram noticiadas, as pedaladas não eram nada mais do que fraude, trapaça, contabilidade criativa para esconder déficit. Algo, no mínimo, duvidoso. Nunca as operações eram informadas como débitos do governo com os bancos públicos que intermediavam empréstimos com subsídios à agricultura, e depois deviam ser ressarcidos das diferenças dos juros, débitos que não puderam ser cobertos em razão da frustração de receitas desde 2014. No caso de uma informação honesta, muitos cidadãos seguramente prefeririam que o governo cobrisse os gastos enquanto o ciclo econômico fosse de retração. De qualquer forma, coube ao Congresso a decisão de criminalizar o gasto público, amplamente apoiado pela propaganda dos meios de comunicação.

Em 2015, primeiro ano do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, como consequência de tal histeria midiática, houve um corte brutal de gastos num momento recessivo do ciclo econômico, e o resultado do aperto fiscal e monetário foi a queda de 3,7% do PIB. Ainda assim, os comentaristas, analistas e jornalistas continuaram atribuindo a crise econômica ao gasto público. Simplesmente ignoraram todas as vozes que advertiam sobre as consequências desastrosas de cortar gastos e investimentos do principal ator econômico em cenário recessivo. Ignoraram igualmente os reiterados protestos contra a taxa básica de juros, um verdadeiro obstáculo ao investimento produtivo no país. A taxa de juros do BC também era justificada como resultado do descontrole dos gastos públicos nos comentários dos especialistas, embora os patamares fossem irracionais sob qualquer parâmetro no contexto atual das finanças no mundo. O cenário era absolutamente insólito. Ver e ouvir um batalhão de comentaristas simplesmente ignorar os fatos mais veementes é estarrecedor e leva o observador a desconfiar da credibilidade de cada um dos comentaristas e analistas notoriamente partidários. O clima era de sabotagem no Congresso, e a mídia falava da falta de habilidade política da presidenta. A agenda predeterminada e o partidarismo podiam ser comprovados na editoria dos principais jornais nos dias de votações no Congresso ou de manifestações e, mais especificamente, na sequência do golpe, na militância de comentaristas e apresentadores em favor das reformas antissociais do governo não eleito.

O jornalismo deixou de ser jornalismo, e a propaganda política é tudo o que se vê nas televisões amplamente patrocinadas pelo governo do golpe. O espectador não tem informações, apenas a defesa de um determinado projeto e a retórica do convencimento de que o projeto em questão é uma necessidade, sem ele o país quebra. O termo usado pela estratégia de terror é este. Trata-se de uma ameaça permanente de que o país quebrará se não houver o corte de gastos. Serviu para aprovar o projeto de teto do orçamento, sem precedentes no mundo neoliberal; e tem servido na campanha em favor da reforma da Previdência Social.

O desmonte de direitos está se consolidando também no campo da legislação trabalhista, com a aprovação da terceirização irrestrita e a revisão da CLT. O retrocesso em termos de direitos é inegável e o que surpreende é que tal agenda francamente antipopular seja aprovada com tanta velocidade por um governo sem a legitimidade das urnas. Parece que as estruturas institucionais do país se tornaram amplamente flexíveis e estão se desintegrando na medida em que se impõe o receituário da mídia inscrito no programa Ponte para o Futuro, por meio do qual o PMDB se lançou ao golpe associando- -se aos interesses das grandes corporações globais.

Até aqui vimos destacando o poder da mídia e, de alguma forma, denunciando uma farsa que é preciso desmontar. O leitor pode redarguir e afirmar a legitimidade da campanha dos meios de comunicação em favor de um determinado projeto político, pois qualquer coisa diferente disso seria censura e cerceamento à existência da livre expressão e dos meios de comunicação. O tema da regulamentação da mídia é complexo e envolve o fato de que as empresas de comunicação são concessões e é possível que sejam restringidas as possibilidades de que concentrem diferentes meios e exerçam monopólio sobre a comunicação, um bem fundamental das sociedades contemporâneas. Mas, se preferirmos o terreno mais seguro da ampla liberdade, sem regulações que não as do campo magnético da difusão, precisamos destacar que hoje temos oligopólios dominando as comunicações no Brasil e, entre eles, as ideias que traduzem interesses de grandes corporações formam uma unidade ou um único pensamento, enquanto silenciam toda a dissensão. Portanto, para democratas que desejam pluralismo e amplo debate de ideias, será sempre pouco denunciar a concentração de poder que a estrutura atual de concessões dos serviços de radiodifusão permite. Isso não significa, sob nenhuma hipótese, advogar qualquer forma de censura, mas trabalhar em favor do debate político, da mediação de interesses diversos e do pluralismo que possa representar as diferentes opiniões e valores da sociedade.

A ideologia que os meios de comunicação promovem no Brasil hoje, e que fundamenta as reformas propostas pelo governo de transição, ou ilegítimo, é o que podemos chamar de ideologia de mercado, em que mercado é um ente sem contornos definidos, embora, na maior parte das informações circulantes, seja identificado a um conjunto de agentes do mercado financeiro, também tratados como investidores. Aqui, uma primeira farsa. Mercado não é o livre movimento de pessoas que escolhem o melhor preço, o melhor emprego, a melhor relação custo-benefício em cada decisão de suas vidas. Não. As pessoas escolhem muito pouco. A começar pelo emprego, e terminando por cada item de consumo, as pessoas têm pouca liberdade, e seus movimentos têm influência reduzida sobre as decisões dos grandes agentes econômicos.

O poder sobre a política de juros, por exemplo, que pode tirar bilhões de reais da economia real e transferir para rentistas detentores de títulos da dívida pública, afeta a vida de cada pessoa e está muito distante das decisões dos solitários consumidores e de seus movimentos individuais. A desregulamentação das taxas de juros cobradas por bancos e financeiras, que também podem tirar bilhões da economia ao permitirem que consumidores paguem duas ou mais vezes o custo do produto comprado, também é decidida a despeito das escolhas do consumidor ou dos empreendedores individuais. A nossa maior ou menor dependência do petróleo ou de outras fontes de energia tampouco está em nossas mãos ou nossas decisões. Os consumidores podem até decidir deixar de ter carros, mas se as cidades estiverem preparadas para transportes rodoviários, o que não é sua decisão, a dependência do combustível se manterá. A política cambial – cujos impactos estão nos preços de todos os artigos que consumimos, mais ou menos, do pão ao medicamento, do diesel ao automóvel e aos aparelhos digitais que usamos, e no emprego, porque ela determina nossa capacidade de exportação – é, da mesma forma, estabelecida independentemente das escolhas ou movimentos individuais. Essas são apenas algumas observações sobre um primeiro ponto enganoso da doutrinação do mercado.

O mercado ao qual se referem nossos conhecidos comentaristas de economia é o mercado financeiro, aquele que domina as decisões sobre investimentos, as quais o governo decidiu se subordinar voluntariamente. É um conjunto de corporações que decide onde investe e quando, independentemente da vontade do freguês. Em geral, decide investir em países cuja mão de obra é barata, os impostos são baixos e a evasão de recursos é fácil. Este é o mercado! Daí se compreende o discurso de que o país precisa conquistar a confiança do mercado. Trata-se da confiança de CEOs que fazem as apostas que movimentarão a vida de milhões de seres humanos como se estivessem num cassino, projetando unicamente os bônus que os altos lucros lhes garantirão. Imaginemos o que pode representar um mercado como o do Brasil para corporações diante de um capitalismo de baixo crescimento, como nos dias atuais, e as pressões que elas e seus Estados patrocinadores fazem para obterem a desregulamentação do mercado nacional, as concessões dos serviços públicos, a desoneração sobre o trabalho contratado, com o fim dos direitos e garantias. E isso para não falar da reciclagem financeira que nossas taxas de juros campeãs já representam no cassino mundial das dívidas públicas. Essa é nossa fragilidade: somos um país de vastos recursos, sem projeto e dominado por uma oligarquia predadora e subalterna.

O liberalismo apregoado é ingênuo na melhor das hipóteses. Na pior, é arma ao serviço dos mais fortes. Nada como indivíduos desprotegidos e sem direitos garantidos por um poder coletivo para servirem às necessidades dos grandes investidores. Existem outros exemplos de desregulamentação, e o que se observa, historicamente, é que ela promove concentração do capital, monopólios e indivíduos cada vez menos livres para tomar decisões sobre suas vidas e seu futuro. Contrariamente, regulamentações dos movimentos dos capitais do mercado permitem maior estabilidade e terrenos mais sólidos para a construção de projetos econômicos, individuais e coletivos, de longo prazo. Do ponto de vista do crescimento ou do desenvolvimento produtivo, o liberalismo serviu à Inglaterra no início do século XIX, quando o país não tinha concorrentes. Antes disso, seu desenvolvimento contou com regulamentações como a que proibiu o comércio em navios fretados, obrigando o país a construir sua própria indústria naval e a que proibiu a importação de têxteis da Holanda. Quando se tornou a locomotiva do mundo, após a Revolução Industrial e dos transportes, com a invenção da ferrovia, o liberalismo contribuiu para que se expandisse pelo globo por meio século, até que os concorrentes chegassem ao nível equivalente de produção industrial e domínio tecnológico. Daí em diante, o liberalismo inglês foi razão de déficit permanente da balança comercial que era amplamente compensado pelo domínio das finanças mundiais e pela tributação colonial da Índia. Nem tudo era liberalismo na hegemonia inglesa do século XIX, afinal (Arrighi, 1996). Para o mundo do século XIX, o liberalismo significou guerras de expansão colonial para abrir mercados e destruição de economias e sociedades tradicionais. Se houve benefícios, é preciso procurar entre as elites coloniais. Mas não os haveremos de encontrar entre os trabalhadores da China, da Índia, do Congo ou do Putumayo. Por fim, cabe lembrar que a trajetória de desenvolvimento das potências que seguiram os passos da Inglaterra e se industrializaram entre os séculos XIX e XX, como Alemanha, Estados Unidos e Japão, é de protecionismo, cartelização, e Estados promotores dos interesses da empresa nacional nos mercados doméstico e global. No século XX, outros exemplos de atuação decisiva do Estado como promotor de industrialização e desenvolvimento nacional são o Brasil, entre os anos de 1930 e 1980, e não à toa em franco processo de desindustrialização, a Coreia e a China. Mas essa história do Brasil a mídia não vai contar.

Apesar do inegável papel histórico dos Estados na indução de desenvolvimento econômico, o programa que o MDB adotou às vésperas da conspiração do impeachment, começa pela necessidade do ajuste fiscal. A crise fiscal do Estado é a mãe das crises econômica e política, segundo a retórica que passou a predominar na oposição e entre alguns partidos da base do governo, como se consenso fosse, desde 2015, e assim está inscrita no programa Ponte para o Futuro, do mesmo ano. É ela a causa da inflação, altas taxas de juros, pressão cambial, impostos elevados e retração dos investimentos. Todos esses fenômenos do campo econômico têm variadas determinações que não são consideradas. Interessa apenas a afirmação de que o Estado brasileiro é grande, ineficiente, retrógrado e um obstáculo ao crescimento. Portanto, a terapia exclusiva é o corte de gastos. O diagnóstico de um desajuste fiscal crítico e a afirmação da necessidade de cortes, como medida imediata e urgente, considerou o fato de que o aumento dos gastos públicos se devia a razões estruturais e a atribuições que o Estado recebeu da Constituição de 1988, e não apenas a decisões de governo, daí a previsão de alterações constitucionais, com a Previdência como alvo prioritário. O que esse diagnóstico terminal baseado em uma expansão de gastos não avalia é a conjuntura de crise, e afirma uma suposta tendência de aumento de gastos em proporção maior do que o aumento do PIB. Tampouco considera o custo financeiro do Estado, estruturalmente o maior aumento entre as despesas públicas brasileiras. Apesar disso, é terminativo. É preciso cortar. Nada se questiona sobre as razões do baixo crescimento, sobre a perigosa desindustrialização. Muito menos se considera o papel que o Estado brasileiro teve e tem como indutor do crescimento. O resultado dessa inversão que se vendeu como verdade é a mais profunda recessão da história do país a partir dos cortes de 2015, ainda sob o governo da presidenta destituída. E é a partir dela e da farsa do diagnóstico fiscalista que se pretende dar o verdadeiro golpe: mudar a estrutura do Estado brasileiro, diminuir suas atribuições econômicas e sociais e retirar-lhe instrumentos políticos decisivos para a consecução de qualquer projeto nacional de desenvolvimento. A Ponte para o Futuro é um programa de diminuição do Brasil no cenário mundial contemporâneo, um rebaixamento, um passaporte para um país sem soberania e de futuro incerto, à espera dos investidores que aqui queiram fazer suas apostas.

Para quem viveu os anos 1980, com a crise da dívida, e os 1990, de reformas neoliberais, parece o retorno do ciclo de horrores das exigências de organismos multilaterais que produziam, naqueles tempos, trágicos resultados sociais e econômicos. E de fato é um retorno, porém mais violento e imperativo, porque converteu nossas elites políticas em agentes voluntários do programa de mercado, adotado como se o mercado fosse a síntese da prosperidade e bem-estar das sociedades humanas. Nos anos 1980 e 1990, havia dissidências e projetos políticos que circulavam como contraponto. Mal ou bem, os programas eram impostos por organismos multilaterais e havia constrangimentos da elite política em cortar direitos. Hoje, os meios de comunicação calam vozes dissonantes, que são apenas vozes e não se expressam em movimentos ou partidos como grandes projetos nacionais. Não há um grande projeto de resistência que possa catalisar as forças. As esquerdas, perdidas e sem ter muito a oferecer, estão aquém do que representaram nos anos 1990. Parece haver, de fato, um consenso em torno do ajuste fiscal e até uma disputa de quem fez mais ou menos ajuste, como se fora desde sempre um valor universal, uma condição necessária em todas as conjunturas.

Parte desse consenso tem relação com as novas gerações cuja memória não alcança o período FHC, de ajustes, desmonte do Estado e aumento do endividamento público ao ponto da insolvência completa. Outra parte se deve à memória construída em torno desse período desastroso da nossa história que é lembrado como o período de conquista da estabilidade econômica. Essa percepção corrobora aquelas observações iniciais sobre a dificuldade do indivíduo privado em avaliar de maneira fundamentada a vida coletiva, com parâmetros mais estruturais e não apenas a partir de categorias e adjetivos que compõem as correntes de notícias da conjuntura presente.

Quais são, afinal, as promessas dos que vendem o programa do governo ilegítimo? A conquista da confiança do investidor é a principal. O pressuposto dessa promessa é falso, por um lado, e politicamente nefasto, por outro. Supõe que a decisão de investimento depende da confiança e não da projeção de lucros e, portanto, das condições do mercado doméstico, de suas relações com os mercados vizinhos, e da demanda efetiva. Se não é por uma visão pouco lógica que se faz tal afirmação, é por pura desonestidade, porque na verdade o que prepararam para conquistar o investidor, que decidirá baseado em seus cálculos, e em nada mais, foi uma derrubada dos custos da mão de obra e a garantia da estabilidade dos impostos, por meio do teto de gastos. E isso é afirmado claramente nas televisões. Mas, genericamente, eles tratam o arsenal antissocial como medidas de um governo responsável, que, em oposição ao irresponsável, vai conquistar a confiança do mercado. Por outro lado, e que parece mais grave, é ter como projeto de nação um não projeto, ou seja, projetar um futuro que depende integralmente das decisões de investidores, primordialmente as corporações globais. Nós abrimos mão de ter protagonismo sobre a agenda de desenvolvimento do país, de traçar as estratégias segundo nossas condições e necessidades. Isso é uma capitulação. Perdemos antes de lutar. É claro que alguns ganham, mas o país e seu povo perde. Pequenas nações não podem sequer pensar em lutar, mas não o Brasil, com seu tamanho e suas riquezas. Como eu entendo que formulado deste modo o problema muda, ou seja, que a maioria dos brasileiros desejaria tomar nas mãos as rédeas do seu futuro, democraticamente, eu concluo que estamos sendo derrotados pelas corporações que encontraram traidores associados entre nossas elites. Não é novidade aqui e na região. E não pode ser minimizado pela suposição de que alguns ainda acreditam em teoria da modernização ou em vantagens comparativas.

O que o mercado promete após o ajuste não foi alcançado outrora e é evidente, pelos resultados dos últimos três anos, que não o será agora. Não há milagres. O crescimento foi 1% depois de dois anos de queda do PIB, e a taxa de investimento é pífia, o desemprego permanece e deve piorar com a flexibilização, porque o cálculo é o de que a exploração do trabalho seja maior, com menor necessidade de contratações. E haverá mais chantagem a céu aberto sobre a necessidade de retirar direitos do trabalhador, sempre à espera da confiança dos investidores que venham oferecer os empregos que os brasileiros precisam. Pode haver algo mais movediço e instável do que este cenário? Estabilidade para quem?

No processo de construção e aprofundamento da crise que já tem quatro anos, desde a campanha presidencial de 2014 e o início Operação Lava Jato, desmontaram-se as bandeiras progressistas que haviam restado ao PT e que ainda representavam uma diferença entre o seu governo e o projeto da oligarquia política tradicional e da sua ala financista, o PSDB. Uma delas, a política externa – de alinhamento sul-sul, fortalecimento da unidade política da América do Sul, ampliação de mercados, negociações multilaterais e a aposta no fortalecimento do Brics – foi rapidamente desmantelada, sem contar a desmoralização das instituições que parecem desvendar ao mundo um cenário de instabilidade típico das repúblicas de bananas. Também não se fala mais no fim da miséria, outra bandeira nunca abandonada pelo PT, nas políticas e no discurso. Não resta nada de projeto nacional. Estamos à deriva, aos sabores do mercado.

O objetivo deste livro é contrapor à visão hegemônica a uma outra interpretação sobre a história do Brasil recente. Não é um livro de economista, mas um trabalho que se situa entre a pesquisa histórica e a memória, como não pode deixar de ser uma história do tempo presente, do tempo da própria vida. Trata-se, antes de tudo, da necessidade de falar de alguém que tem referências muito discrepantes do consenso que se construiu cuidadosamente com objetivos não declarados. Alguém cujo objeto de estudo é a História Política por acreditar que as transformações históricas dependem das escolhas dos atores que detêm poder nas suas variadas formas. Essas escolhas dependem de valores, da cultura de um determinado tempo, e, portanto, das ideias e das instituições que, em alguma medida, procuram rotinizar essas ideias de acordo com as necessidades de se construir uma determinada ordem para alcançar objetivos que podem ser consensuais entre todos ou apenas entre os grupos de poder. No capitalismo, é impossível separar a política da economia. Todas as decisões ou escolhas que as sociedades fazem sobre as formas de sua organização estão mais ou menos subordinadas ao mercado global e aos processos de acumulação do capital. Durante o século XX, ainda assistimos a uma disputa entre os ideais de planificação da economia e o livre mercado. Hoje, como vemos, o mercado predomina e a autonomia dos Estados parece encolher diante do poder das corporações globais. Mas as consequências desse amplo poder de empresas são indiscutíveis do ponto de vista dos retrocessos do sistema da democracia representativa e da ampliação das desigualdades (Piketty, 2014). Diante desses desafios, os dados e indicadores são necessários para demonstrar os fatos por trás da razão e das interpretações que eu desenvolvo há alguns anos, em sala de aula, e em alguns escritos dispersos. O desafio, entretanto, é estimular a invenção, a criação de projetos que nos devolvam a autonomia política e um destino por construir.

Os significados do pensamento hegemônico sobre os quais eu polemizo têm suas raízes nos anos de 1980 fora do Brasil e ganham força aqui e na América Latina na década seguinte, resultando em um conjunto de reformas neoliberais. Essas reformas simultâneas em vários países não podem ser compreendidas apenas como respostas à exuberância das promessas da globalização. Elas foram impostas como condição para um retorno dos países da América Latina ao sistema internacional de financiamentos e investimentos. E, portanto, só podem ser compreendidas se analisamos a crise da dívida, o fim do modelo de desenvolvimento e os fenômenos inflacionários. É o que proponho na primeira parte do livro. Em seguida, tratei de examinar as reformas empreendidas nos anos de 1990, nos governos Collor, Itamar e FHC, com destaque para o custo do programa de estabilização da moeda com âncora cambial, responsável por déficit crônico da balança comercial, e para o custo fiscal resultante das altas taxas de juros. Também

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