Sou Surdo e Gosto de Música: A Musicalidade da Pessoa Surda na Perspectiva Histórico-Cultural
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Elas vivenciam a musicalidade?
Bem, essas são perguntas comuns e frequentes para quem não teve acesso a este texto, ao finalizar a leitura, você entenderá como tudo isso se torna possível.
A experiência musical, para nós, acontece antes do nascimento, a partir das percepções ainda no útero materno. Elas são sentidas em nossa pele. O som do movimento do corpo é vivenciado de diversas formas e tudo isso faz parte do desenvolvimento da nossa musicalidade, isto é, da criação, da expressão e da interpretação musical do nosso ser. Assim, entendemos que a vivência da musicalidade acontece de modo multissensorial na unidade do funcionamento do organismo.
Como base teórica para compreendermos a relação da pessoa surda com o mundo sonoro, nos apropriamos da teoria histórico-cultural de Vigotski. Ela nos permite perceber o indivíduo como ser de possibilidades, em que a pessoa surda apresenta um defeito biológico, mas só é vista como uma pessoa com deficiência em sua relação na sociedade.
Este é um texto necessário para os corações e para as mentes de todo educador e educadora que tem a possibilidade de viver com a dessemelhança do outro, com sua singularidade, pois clarifica o entendimento de que a diferença entre os sujeitos educativos se situa no campo da diversidade de desenvolvimento humano.
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Book preview
Sou Surdo e Gosto de Música - Tatiane Ribeiro Morais de Paula
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE
Brincar de viver
Quem me chamou
Quem vai querer voltar pro ninho
Redescobrir seu lugar
Pra retornar e enfrentar o dia a dia
Reaprender a sonhar
Você verá que é mesmo assim
Que a história não tem fim
Continua sempre que você responde sim
À sua imaginação
À arte de sorrir cada vez que o mundo diz não
Você verá que a emoção começa agora
Agora é brincar de viver
Não esquecer, ninguém é o centro do universo
Assim é maior o prazer...
E eu desejo amar todos que eu cruzar pelo meu caminho
Como sou feliz, eu quero ver feliz
Quem andar comigo, vem.
(Guilherme Arantes)
PREFÁCIO
O texto apresentado é uma marca importante num momento de perdas e muitos retrocessos nas conquistas históricas dos movimentos culturais, políticos e linguísticos no Brasil e na América Latina. É um alento poder ler um texto dedicado, amoroso, politizado, comprometido com o outro e com tamanha originalidade, na lente que vê a música, na e com a cultura surda. Um trabalho aberto ao diálogo, pois em sua sutil polêmica, reposiciona o conceito de música, som, surdez e, principalmente, em seu legado conceitual, a música como uma vivência de musicalidade, multissensorial, democrática e sonora, sem a colagem com a orelha.
Simples, potente, autoral e recortado na teoria que sustenta a íntegra do trabalho apresentado. Uma leitura de Lev Semionovich Vigotski que esclarece, convence e provoca o leitor. As autoras trabalham com esse pensador sem se aterem ao acionamento exclusivo de conceitos mais conhecidos, repetidos à exaustão na academia. Tecem a costura entre a compensação e a vivência de outra forma, problematizando o que para os sujeitos Surdos é a potência de existir na língua e na linguagem. Um texto rigoroso, cuidadoso e implicado no conceito de vivência como fio condutor da escrita.
As reflexões contidas na presente obra estão divididas em partes que se caracterizam por uma releitura de momentos históricos importantes, questionamentos, acionamentos de conceitos que a auxiliam pensar para além do já dito, escuta e análise sensível dos sujeitos acompanhados em sua investigação. Trabalho pautado por questões, como: quais os modos de vivência da musicalidade da pessoa surda? Como a pessoa surda relaciona-se com a música? Ao elaborar questões como essas, escolhem um caminho corajoso e o seguem, convictas de que a incompletude e a transformação as acompanharão. O desejo, fica claro, é compartilhar com o leitor suas descobertas, descobrindo o quase não dito, apresentando-o a nós, em uma explícita desacomodação de certezas.
I. Educação musical e a pessoa surda e II. Compreendendo um pouco da história das pessoas surdas e do universo sonoro. Trata-se de um espaço para trazer autores surdos e não surdos, falando sobre som, som como partícula sensorial, música, musicalidade e cultura surda. A relação com a música sempre foi para docilizar, domesticar a surdez, uma possibilidade de aproximar o surdo do mundo ouvinte
. Nas páginas que seguem, há a desconstrução disso, uma problematização às avessas, um grito pelo direito a uma educação musical que viva a música em sua unidade de sentido multissensorial, uma possibilidade de experiência musical, experiência estética.
III. Nossos passos. As autoras inovam, escolhendo um caminho indireto, utilizam a etnografia sensorial que proporciona grande singularidade à investigação e às análises. Os sujeitos desse caminho ‒ Diogo, Levy, Lis, Bianca e Rebeca ‒ são a tessitura sutil da vida, da teoria, da atenção cuidadosa das autoras e de nosso questionamento e aprendizagem, vividos desde suas histórias até suas palavras, destacadas página a página, neste livro, em um movimento que nos apresenta a unidade afeto-intelecto de cada um. A partir desse momento, o texto coloca em primeiro plano a compreensão radical de que todos os seres são musicais, reafirmando a tese de Patrícia Pederiva. A multiplicidade dos modos de vida precisa ser permitida e incentivada, em um movimento que possibilita as outridades e o rompimento com a colonização do ser.
IV. A pessoa surda na perspectiva histórico-cultural e V. A Descoberta. O texto nos apresenta a investigação dos modos de vivência da musicalidade da pessoa surda, considerando sua cultura a partir da perspectiva histórico-cultural de Lev Semionovich Vigotski. A obra Defectologia é a base para valorizar o devir a ser em contraponto ao determinismo biológico de outras abordagens. Qualitativamente, texto e vivência empírica se misturam e ratificam a importância de rompermos barreiras físicas e atitudinais, impostas pelo preconceito e verdades pré-concebidas.
Nestas páginas, redescobrimos nosso lugar de interlocução, reaprendemos a sonhar e ver que a arte de sorrir cada vez que o mundo diz não
é uma forte construção de resistência, de luta por reconhecimento de direitos, língua, fazeres criativos, processos singulares e, também, pertencimento cultural e defesa da Cultura Surda. Ao leitor caberá análise acerca do convite provocativo das autoras, para que vivam a educação musical para além da percepção auditiva e, assim, reinventem novas práticas de educação musical no sistema educacional brasileiro e nas experiências com o outro Surdo.
Fátima Lucília Vidal Rodrigues
Professora na Faculdade de Educação
Universidade de Brasília
apresentação
Quem imaginou uma pessoa surda aprender música?
Se essa curiosa indagação não fizesse parte do rigoroso estudo de base científica, que contém em si um articulado raciocínio teórico e rigoroso fundamento metodológico, diriam alguns que isso é fato imaginário, coisa estranha e rara de se ver, ou, ainda, um desses casos excepcionais que existe no mundo e que a gente conhece de ouvir falar. No entanto essa citação, que é parte do discurso de formatura de uma pessoa surda do Conservatório Estadual de Música Cora Pavan Capparelli – Uberlândia – Minas Gerais, assim como outras, não menos importantes, traça a tessitura argumentativa que compõe a presente obra.
O livro traz uma auspiciosa proposição referente à vivência da musicalidade das pessoas surdas e apresenta, desde os fundamentos histórico-culturais, uma perspectiva humanizadora de como compreender a música, o corpo e a musicalidade.
Ao considerar que a música é frequência e vibração presente na vida, materializada entre os sons e os movimentos na relação do corpo no meio cultural, abrem-se as possibilidades para compreender que o mundo sonoro é captado não somente pelo aparelho auditivo, mas que o ouvimos com a pele, com os ossos, com os órgãos, enfim, com o corpo inteiro. Ao mostrar a expressividade musical do corpo, as autoras defendem que ele, como um todo integrado, vive a musicalidade de maneira inteligente e muito além do ouvido e, sendo assim, as pessoas surdas podem vivenciar sua musicalidade.
Sem dúvida, essa é uma provocação que as autoras fazem para o leitor, ao afirmar que a musicalidade acontece no corpo, em sua relação com o mundo. O corpo aqui é compreendido em sua totalidade, superando a concepção de que ele é uma justaposição de partes interativas. E isso engloba o sentir, o perceber, o pensar e o agir dos corpos na relação com os outros corpos, sejam eles humanos ou não.
As autoras assumem o posicionamento que considera a experiência a base do conhecimento e que ela é adquirida na relação com o mundo. Desse modo, as práticas pedagógicas deveriam oportunizar o desenvolvimento musical das pessoas surdas, considerando os modos de vivência de sua musicalidade, assim como todas as suas potencialidades, a partir da própria cultura surda.
O texto, em sua base, traz, ao tom da profícua dialética, a inter-relação entre educação, cultura e corpo humano, para falar da musicalidade das pessoas surdas e da necessária compreensão do fenômeno biológico e cultural que a envolve. Desse modo, faz refletir sobre os sentidos e a potência do corpo, e a influência dos aspectos culturais nas formas de ver, de compreender e de se relacionar com a pessoa surda.
A musicalidade do próprio texto traz a ideia da música como bem cultural produzido social e democraticamente, portanto direito de todos. A música é de todos e é para todos, situa reiteradas vezes as reflexões apresentadas no texto. Somos conduzidos a uma experiência estética que engloba as forças do pensamento e do sentimento, unindo razão e emoção. Ancorada no entendimento de que o ser humano é uma unidade afeto-intelecto, conceito postulado por Vigotski, a obra expressa o papel das emoções e do pensar na constituição do ser humano, e assim propõe que o pensamento e o sentimento sejam colocados a favor da criação e da imaginação humana, por meio da educação musical.
Além dessa dimensão estética, o livro abarca uma dimensão ética que merece um destaque especial. Amparando-se nos fundamentos histórico-cultural, o texto trata cuidadosamente da relação entre defeito e deficiência, limitando o defeito a uma dimensão biológica e atribuindo a deficiência a um constructo social e cultural que, como denunciam as autoras, está carregado de preconceito. Ao tratar de maneira clara e vigorosa de uma delicada questão, que habita ente o campo da diferença e da diversidade da espécie humana, aponta as possibilidades de desenvolvimento da musicalidade das pessoas surdas, desde os baldrames da perejivanie de Vigotski e da unidade afeto-intelecto. A construção teórica apresentada neste volume ilumina o nosso olhar sobre o tema da deficiência e gera um posicionamento crítico e inovador frente à cultura e à musicalidade da pessoa surda.
De fato, essa é uma contribuição ímpar que o texto apresenta à sociedade. Essa visão questiona a forma como as instituições educacionais veem e tratam a pessoa surda em relação à música e sua musicalidade. Diante dessa evidência, todo professor e professora poderá ver o ser aprendente como um ser de potência, e organizar os espaços e as práticas educativas de modo a promoverem as experiências culturais múltiplas que desenvolvem a musicalidade da pessoa surda.
Neste estudo, é importante ressaltar que o observar e o analisar de todos os matizes dos modos pelos quais a pessoa surda vivencia sua musicalidade, foram possíveis graças às lentes sensíveis da etnografia sensorial, que auxiliou a compreender, a partir da cultura surda, os variados modos de vivência da musicalidade. O objetivo deste volume é compreender como a pessoa surda relaciona-se com a música e quais os modos de vivência de sua musicalidade. Para alcançar essa intencionalidade, concebendo a própria escrita como uma unidade integrada na qual as partes se inter-relacionam dialeticamente, a estrutura da obra foi distribuída em capítulos.
Com o título "Educação musical e a pessoa surda", as autoras realizam uma revisão bibliográfica a partir de três unidades temáticas: a música, a educação musical e a surdez. A escrita é leve, clara e ajuda o leitor a se aproximar de pesquisas realizadas no Brasil. O que se evidencia nesse capítulo é a pouca presença de estudos sobre o tema e a inexistência da abordagem histórico-cultural na discussão da musicalidade da pessoa surda, o que torna esta pesquisa inédita e ainda mais meritória devido à relevância temática e ao tipo de abordagem teórica e metodológica para a pesquisa em educação no País.
No capítulo intitulado "Compreendendo um pouco da história das pessoas surdas e