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Memorias Acadêmicas: Médico, Professor, Pesquisador 40 anos
Memorias Acadêmicas: Médico, Professor, Pesquisador 40 anos
Memorias Acadêmicas: Médico, Professor, Pesquisador 40 anos
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Memorias Acadêmicas: Médico, Professor, Pesquisador 40 anos

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As memórias acadêmicas do professor Fuchs apresentam 40 anos de atividades médica, docente e de pesquisador. Sua trajetória e realizações são contadas em tom coloquial, como se o autor estivesse conversando com amigos. Descreve fatos e cenários que circundaram sua formação e atuação profissional. Como o próprio autor antecipa no capítulo de abertura, ressalta as realizações, as amizades, as facetas nobres de nossa, por vezes e por vezes muitas vezes, predadora espécie humana. A forma como apresenta sua produção científica, em paralelo com sua visão de ciência e sociedade, decodifica a ciência, permitindo ao leitor leigo entender seus princípios e desígnios. Agregou capítulos com histórias pessoais e um capítulo em homenagem a um querido amigo, há pouco falecido, o professor Jorge Pinto Ribeiro. Professor Fuchs brincou muito, por vezes com ele mesmo, outras vezes com amigos, contando muitas histórias. Disso resultou um texto leve, muitas vezes divertido, que mostra mais do que sua trajetória acadêmica, permitindo vivenciar os ambientes onde médicos e professores de escolas médicas cuidam de doentes enquanto formam novos médicos.
LanguagePortuguês
PublisherEditora Buqui
Release dateDec 2, 2014
ISBN9788583381143
Memorias Acadêmicas: Médico, Professor, Pesquisador 40 anos

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    Book preview

    Memorias Acadêmicas - Flávio Dani Fuchs

    A Sandra, Felipe e Paulo

    A minha família

    A meus amigos

    Prólogo

    Deu-se em mim muito cedo o gosto pelo ensino e, mais tarde, a paixão pela pesquisa e medicina. Achei-me como professor universitário e àquelas lides me dedico há 40 anos. Aqui relato a memória desses anos e outras histórias.

    Opening remarks

    Essas memórias descendem de um memorial para concurso de titular que não se realizou. Depois de mais de 20 anos sem haver concursos para esse cargo, minha universidade, a UFRGS, abriu tal possibilidade. Na Faculdade de Medicina, muitos departamentos realizaram concursos – alguns foram memoráveis. No meu departamento, Medicina Interna, poucos candidatos inscreveram-se, e, pelo menos por ser um dos mais veteranos, eu tinha boas possibilidades de me classificar bem. Ineficiência, procrastinação, revenge ou outros sentimentos atrasaram em muito sua realização, e, mesmo com candidatos inscritos, banca aprovada e convidada, o concurso não saiu, pois nova lei reordenou o acesso às classes docentes, principalmente de titular. Entre a autorização para realização do concurso e a entrada em vigor da nova lei, passaram-se 15 meses, uma medida objetiva da procrastinação.

    Meus bravos colegas de colegiado do departamento, à ocasião, sabem do que falo, foi uma longa batalha. Entre eles estavam Francisco Veronese, Léa Fialkow e Themis Zelmanovitz, que tomaram a iniciativa de não aprovar a banca inicialmente escolhida pelos responsáveis e de encaminhar a escolha de banca legítima, em que seus membros tivessem história acadêmica condizente com a dos concorrentes. Acho que, em todo esse episódio, fui vítima de maldade acadêmica, mas, como em outras ocasiões, me animou a responder propositivamente. Quem sabe talvez tenha sido bom que o dito concurso tenha ido para as calendas gregas. E esse será o espírito destas memórias, ressaltar as realizações, as amizades, as facetas nobres de nossa, por vezes e por vezes muitas vezes, predadora espécie humana.

    Deu-me forte vontade de dar divulgação ao memorial, que nunca seria apresentado a uma banca e em sessão pública. Dedicara-me pelo menos durante cinco centenas de horas a prepará-lo, ele estava quase pronto quando o concurso foi suspenso, e o documento me parecia muito vigoroso. Além disso, deu-me vontade de escrever, talvez como os escritores, que escrevem porque têm vontade. Eles, como eu, pretendemos que nos leiam, e gostem. Muitos escritores de sucesso terminam por se autobiografar, como Verissimo, no seu belo Solo de Clarineta. Nesse momento da vida, o reconhecimento das memórias está garantido, e muitos se apressam a lê-las, até porque gostaram de suas obras originais. Roberto Campos, que, tanto quanto eu saiba, só produziu textos acadêmicos e técnicos, escreveu ao fim da vida belíssima memória, Lanterna na Popa. Há infinitos exemplos desses diferentes tipos de memorialistas, incluindo aqueles que têm suas memórias escritas por terceiros, como Steve Jobs. Peço licença para ter a audácia de listar minhas memórias acadêmicas após os exemplos de memórias de tão ilustres personagens. Se as lerem, verão que se trata da memória de um bobão, mas espero que gostem.

    Se impressos em uma única obra, meus textos acadêmicos dariam alguns bons tomos, e me senti autorizado a descrever esta experiência de forma diversa da soma dos textos, baseando-me no memorial. E acho que já fiz o suficiente para ser contado. Haverá mais por contar, mas e se eu morrer antes? Ninguém poderá contar como eu, nem entrevistando muitos de meus pares nas seis últimas décadas.

    No primeiro ciclo vital – infância e juventude –, aprendi a aprender e introjetei gostos e valores. No segundo ciclo – profissional –, lutei pela vida, cheguei a ter seis empregos, depois restritos a três, constituí família, ganhei alguma grana e construí a dita memória acadêmica, volume I. Estimo que o terceiro ciclo, que se iniciou nos meus 60 anos, com somente um emprego, dará frutos. Planejo minha aposentadoria para os 90 anos, mas talvez tenha que estender um pouco, quem sabe trabalhando somente em meio turno.

    Por um tempo andei ambivalente, mesmo com alguns capítulos adiantados. Sandra me cercava com a dúvida sobre minha própria loucura ou pelo menos temeridade, mas finalmente decidi. O triggering foi conjunto de e-mails que tenho em diretório de assuntos por fazer há alguns anos, trocados com Luis Beck, Suzana Lago, Sandro Cadaval Gonçalves e Ana Cláudia Tonelli, queridos amigos, colegas e ex-alunos. Neles se tentava marcar um jantar que ainda não aconteceu, e o assunto do e-mail era Reunião Filosofal com o Mestre. Filósofo, eu?! Decidi então escrever para esses e para meus muitos amigos e também para a família, mesmo que essa tivesse receio de que eu escrevesse. Todos eles poderão ler o conversado no dito jantar, que durará 21 dias.

    Decidira escrever como falo, mas ainda bem que desisti, ficou um pouco aproximado de como eu falo socialmente. Quem me conheceu, como meus mais de 10 mil ex-alunos, poderá eventualmente ler e relembrar de episódios de sua própria vida no momento em que nos cruzamos. Alguns poderão até diminuir a antipatia que por mim nutriram na ocasião. Os mais próximos ficaram próximos pela vida e estão no livro.

    Esse relato pode também animar jovens no início de suas carreiras e vidas. A esses assaltam costumeiramente a dúvida sobre decisões, o medo do fracasso e das injustiças e o temor dos compromissos. Minha carreira, como verão, abriga tudo isso em muitos momentos, por vezes ao mesmo tempo. Evitá-los é impossível, importa mais como agir em resposta.

    Não há receita de bolo, quem já é suficientemente alfabetizado para ler este já está pronto para a vida. Se tiver bons sentimentos, a vida se resolverá. Que palavra poderosa essa, abriga anseio, emoção, compaixão, dor, mágoa, pena, percepção, opinião, preferência e sensibilidade entre seus sinônimos. Antes que isto vire um livro de autoajuda, resumo a receita, siga o preconizado por Epicuro e Fuchs, viva em virtude, cultura e ciência. Ciência é minha contribuição ao postulado de Epicuro. Calma, proponho não que nos transformemos em cientistas, mas que tenhamos sensibilidade para entender seus métodos e desígnios. Os avanços científicos têm modificado sobremaneira nossa forma de viver, contribuindo para a melhora nas relações humanas.

    No memorial já tinha usado por vezes um tom informal, de brincadeira até, e pensava em me arriscar frente à banca com essa escolha. Estava sob risco de sofrer outra maldade acadêmica, ou a justiça acadêmica, expressa por uma nota zero na prova específica, mas minha decisão foi incoercível. Na transformação do memorial em livro de memórias, dei-me liberdade, circundando muitos momentos por conteúdo que não estaria em memorial. Em alguns momentos fujo da linha acadêmica, antecipando as memórias não acadêmicas. Insiro também alguns pensamentos e interpretações da vida, a vida longa e suas experiências me ensinaram pelos poros, e um capítulo especial dedicado a meu querido amigo Jorge Pinto Ribeiro.

    Tomei a decisão de escrever após a suspensão do concurso, mas, absorvido pela demanda profissional, pouco toquei o projeto. A tal vontade de escrever persistia, e minha vinda a Harvard, para um período sabático, foi em parte motivada por isto, achar espaço para escrever. Se no Brasil estivesse a essa hora, no sábado estaria no Clube do Médico (que de médico e clube só tem o nome) jogando sinuca e ouvindo e dizendo as mesmas piadas há quase quarenta anos. Viram que arrumei tempo, escrevi este parágrafo em um sábado de manhã outonal, ainda no verão em Boston. Sandra, aqui sentada comigo trabalhando, nós dois terminando a laundry, acabou de tocar o timer para buscarmos as roupas na secadora. Ontem fiz a faxina, sou cobra na QBoa, que aqui é menos concentrada.

    O tempo foi muito menor que o esperado. Entre a administração a distância de projetos, revisão e submissão de artigos, revisão de artigos para inúmeros periódicos, elaboração de proposals para projetos daqui, administração das coisas locais, atividades no hospital, preparação de apresentação aos pares, lazer, algumas viagens, sobrou quase tempo nenhum. Também porque há gostoso lazer, convivência com amigos e um verdadeiro sonho esportivo na enorme TV providenciada pela Sandra. Gosto que me enrosco de esportes em geral, tenho dificuldade somente com badminton e ultimate fighting. As tais artes marciais mistas mimetizam o Coliseu romano, e acho que a humanidade já andou demais para esse retorno à barbárie.

    O futebol inglês é o melhor evento esportivo contemporâneo e prolongado do mundo; a TV dos gringos aqui transmite quase todos os jogos, inclusive em rede aberta. Os melhores jogadores estão na Espanha, e o melhor time no momento é o Bayern de Munique. Na Inglaterra estão as organizações táticas impecáveis, os gramados maravilhosos, os melhores goleiros da face da Terra, os estádios sempre lotados, com todos sentadinhos à beira do campo, sem telas. Há jogadas ríspidas, mas leais, os juízes são ingleses, há vários times de primeira linha, e nesse ano o campeonato está emocionante.

    Até West Ham (presunto do oeste, apesar de ser time do leste de Londres; o Ham tem outro significado, procurem no Google) versus Southampton é jogo bom, todos com tradição centenária e com torcidas fanáticas. Muitos brasileiros jogam como os ingleses exigem, completamente dedicados, brilhantes. Ramirez, David Luiz e William, do Chelsea, são os melhores desse ano. Mas o melhor entre todos nessa temporada é vizinho nosso, o sanguíneo e eficiente uruguaio Suárez. Curioso que a Inglaterra, um dos berços da civilização, tenha tolerado por muito tempo os holligans, mas agora estão todos bem comportados.

    A liberdade para escrever o que me deu na telha me levou por caminhos infinitos de vida e de mente, como viram. Mesmo que amarrada pela linha acadêmica, as histórias e pensamentos pareciam intermináveis, e, se alguma disciplina não me impusesse, não terminaria nunca de escrever, a memória teria vinte tomos, nem eu leria. Assim, policiei-me e deixei de fora um grande reservatório de momentos de vida e, nos últimos 45 dias aqui em Boston, me enfurnei na escrevinhação destas memórias, restringindo o conteúdo ao fio acadêmico e limitando-o ao volume 1. No retorno a Porto Alegre, em março de 2014, dei o acabamento ao texto, levemente editado posteriormente por sugestões de alguns próximos. Deixo planejado, para desespero de todos, o volume 2 e minhas memórias não acadêmicas. Boa leitura.

    Ady Silva Fuchs, meu pai, nasceu em Bagé, de ascendência paterna até hoje discutida – alemães que migraram à Polônia e então ao Brasil, talvez judeus – e ascendência materna portuguesa e gaúcha, bugre. Perdeu mãe e pai muito cedo, quando tinha três e 11 anos, respectivamente. Por alguns anos, foi criado por seu avô materno, o velho Galvão, figura muito conhecida em Bagé. A vida foi difícil, o dito avô o tirou da escola (ficou menos de cinco anos lá) e o pôs a trabalhar em armazém de amigo, carregava sacos de 60 kg na cabeça. Mais adiante suas irmãs mais velhas cuidaram dele. Foi para o quartel e esteve prestes a ir para a Segunda Guerra. Com 21 anos, passou ou foi passado, por um tio meu, em um concurso no Banrisul, indo trabalhar em Caxias do Sul. Ali se casou com Therezinha Danni, gringa da gema. A vida de minha mãe também não fora nada fácil até então. Minha avó materna trabalhou muito, fazia permanente nas gringas, construiu um pequeno patrimônio, mas foi acometida precocemente por doença mental grave, com internações repetidas no São Pedro, em Porto Alegre. Therezinha estudou por nove anos, adorava a escola e era muito boa aluna, mas teve de colaborar no orçamento doméstico, saindo da escola para ir trabalhar no escritório da Eberle, famosa fábrica caxiense.

    Minha querida irmã, a Sandra, escreveu algo com que fiquei após seu falecimento, dirigido a Laura e Cláudia, minhas afilhadas: O papel dos pais é propiciar a seus filhos uma vida melhor que a que eles mesmos tiveram. Meus pais foram um case de sucesso, conseguiram absorver e relevar as angústias e sofrimentos e aproveitar o afeto possível para criar um ninho muito bom para nós. Até porque partimos de patamares mais altos, não tenho certeza de que Sandra e Josué, e Sandra e eu, tenhamos sido tão eficientes como foram Ady e Therezinha. Tenho só a certeza de que nos esforçamos muito.

    Vivi dez anos em Caxias; Sandra nasceu quando eu tinha sete. A vida era típica do interior, com algum gosto pela escola. Meu pai era absolutamente objetivo, de raciocínio instantâneo, com avaliações rápidas e conclusivas de pessoas e situações. Teve carreira brilhante no banco, chegando a vice-diretor. Humor instantâneo era outra de suas características. Chamava-me de cara, mas minha irmã teve múltiplos apelidos e nomes – Alquinar, Valdemar, Valdemor, Alfredo e outros que a memória me trai. Lembro-me de visita que se disse impressionada pelo fato de a menina se chamar Valdemar. Minha mãe lia e lê muito e incutiu-me esse gosto. A base literária para a minha vida estabeleceu-se pela leitura, até os dez anos, de toda a coleção de Monteiro Lobato, por repetidas vezes. Logo depois li, ou consultei, vários tomos da enciclopédia Tesouro da Juventude, particularmente o Livro dos Porquês. Acho que não encontrei algumas respostas, que me pus a procurar anos depois, como a cura da hipertensão arterial.

    Ady, Therezinha, Flávio e Sandra; e dizem que Neymar lançou moda!

    Coleção rara em restauração

    O jardim da infância da época estava longe de ser politicamente correto; o espaço era disputado até em combates. Sei lá eu onde estavam os professores quando da guerra de cadeiras jogadas por cima de barricadas de mesas – uma deu-me um bom galo. Talvez tenha vivido os primórdios de uma vida musical e artística que eu ainda tenha pela frente, pois fui o maestro da orquestra e o lobo mau nas apresentações de formatura. A experiência musical transformou-se somente em gosto musical eclético – trabalho ouvindo barroco ou country americano; a de lobo mau pode ter antecipado alguns de meus futuros comportamentos.

    No primeiro ano do Primário, tive talvez o primeiro embate intelectual, pois me esqueci dos sustentados no jardim de infância. A professora pediu-nos que desenhássemos relógio, e o fiz com os números orientados para o centro. Pediu-me para corrigir e não aceitei, pois me inspirara no relógio da Eberle (fábrica caxiense famosa), em um dos prédios mais altos à época em Caxias, que eu enxergava de minha casa. Ela ficou de conferir e, no dia seguinte, concordamos que ambos estávamos certos. Muitos colegas, professores, chefes e outras pessoas com quem convivi ao correr da vida poderiam concluir que esse teria sido um bom momento para me internar em um reformatório e prevenir os muitos incômodos futuros.

    A família lidou pragmaticamente com minha pretensa sabedoria ao correr dos anos. Frente a minhas sábias interpretações, pai, mãe, tia e outros simplesmente diziam: Lá vem o Ludovico (sabe-tudo). Procurem, leitores jovens, nos sebos das histórias em quadrinhos, quem era esse personagem. Minhas pretensas determinações eram também qualificadas: Olhem o General Cadorna, cagando ordens! (ao Google). Se fosse hoje, o conjunto de gozações a mim dirigidas caracterizaria bullying em alto grau. Bem, talvez tenha me vingado disso com meus filhos, alunos, amigos e o povo em geral.

    O relógio da Eberle, como era em 1957 e ainda é atualmente

    O berço familiar se completava por boa parte da família de minha mãe, tipicamente de colonos de descendência italiana, medianamente aculturados, que moravam no centro de Caxias. Bruta béstia era expressão costumeira, mas o afeto estava nos atos. Do lado do pai também havia importantes influências, trazendo a natureza gaúcha, do Alegrete e de Bagé. Havia, curiosamente, muitas similitudes entre as famílias, como certa obsessão pela limpeza, e também alguns impropérios, típicos na educação de meu primo Constantino pela minha madrinha Mercedes, mas igualmente com afeto. As famílias se deram, em geral, bem na vida, mas se reproduziram pouco.

    O berço gringo, frente e verso; morava em aconchegante apartamento na água-furtada do prédio à esquerda. Da janela do alto, nos fundos, enxergava o tal do relógio; família na foto, atrás do Monza, Sandra e Felipe na outra. Se tivesse sido tombada, a casa de madeira seria hoje museu no centro de Caxias.

    Na linha de questionamento, já no Primário comecei a resolver definitivamente uma questão filosófica que atormenta a humanidade, a crença em Deus. Mãe, com autoridade delegada por pai, me botou nos caminhos do bom cristão, católico, apostólico, romano, incluindo batismo, crisma, primeira comunhão e ida à missa aos domingos. O problema é que mãe e pai não iam à missa. Aliás, meu pai did not give a shit for religion. Eu ia à missa das dez, mas ficava do lado de fora, nas escadas, com a justificativa de que a igreja estava lotada. De vez em quando me confessava – padre, pensei 30 coisas feias e fiz outras 20; toma lá cinco pais-nossos e 20 ave-marias, o próximo... Por um tempo fiquei lá com medo de Deus (e da minha mãe), mas achava tudo meio que uma bobagem.

    A vida fora da escola foi muito rica; muito da vida se aprende com os amigos. Nessa época estabeleci um padrão de amizades duplo, com meus colegas e amigos de mesma idade e com amigos mais velhos, situação que se repetiu pela vida. Com os mais velhos havia sempre um cenário de desafio, o pirralho tinha que se defender. Na cidade a liberdade era plena, não havia riscos maiores de atropelamento, de assalto nem se falava, os carros ficavam até com a chave na ignição. Desde o jardim da infância, ia caminhando à escola, sete a oito quadras de casa – Dona Therezinha me mandava atravessar no meio da quadra.

    Já desafiávamos o establishment adulto. Lembro-me de que tomávamos banho em lagoa formada por chuva em grande terreno situado nos arredores da cidade, após passar pelo mato do Magnabosco. O verão era terrível, sem piscina, sem rios. O proprietário não queria saber de pirralhos e, quando percebia nossa presença, saía de casa com arma de caça e disparava, imagino hoje que para o céu. Voávamos mato adentro, ziguezagueando para fugir do chumbo. Ah, e carregando o calção e a camiseta, pois o banho era em estado natural.

    Meus pais acampavam lá para os lados do Lajeado Grande, no campo, próximo a capões (matos), com amigos e seus filhos, meus amigos mais velhos. Emoção pura, pesca à noite, caça de dia, churrasco no socavão, como chamávamos o alojamento natural dentro de um capão. Uma vez fiquei com o pé no cemitério de ossos do churrasco e levei mordida de marimbondo que está até hoje entre as três, talvez, maiores dores que senti. Formou-se imensa bolha, e meu fim de semana foi para o espaço. E muito banho no rio que passava pelo Lajeado, formando aqui e ali piscinas naturais. Eu era bom nadador. As viagens de ida e volta eram uma aventura, estradas de terra, com atoleiros, passagem pelo Lajeado. Meu pai tinha um Opel 1935, recauchutado, velhíssimo, chovia dentro. Nos passeios pela cidade, o velho saía com bota de chuva.

    Em uma volta da praia, de Areias Brancas a Caxias, vivemos grande aventura. De lá (praia vizinha a Arroio do Sal) até Tramandaí era na areia. No meio da viagem, paramos em Santo Antônio para jantar e comer sonhos; meu pai deixou cair a chave do carro e não a achou no chão, nem depois de quase desmanchar o carro. Fomos adiante: o Isaac, amigo do pai que estava de carona, ligava o carro com sua longa unha do mindinho.

    Na subida da serra, foi-se a luz do carro, já na madrugada. Ou funcionava o motor ou a luz. O Galego, outro amigo, em um flamante Austin A40, ia na frente, bem lentamente; o Isaac sentava-se no capô de nosso carro com uma lanterna; o Galego acelerava, e o Isaac saltava do carro e corria atrás, gritando, com a lanterna. No dia seguinte, minha mãe foi arrumar minha calça de Brim-Coringa, com bainha externa, de onde caiu a chave. Talvez ali tenha se constituído uma das bases de minha racionalidade: tudo tem uma explicação.

    A maior dor da vida foi de uma fratura supracondiliana, com deslocamento, em uma queda em casa. O pediatra, famoso Dr. Ordovaz, fazia de tudo, inclusive reduzir fraturas. Gritei, como gritei, meu pai me segurava pelo ombro e ele puxava o braço para redução. A anestesia também tinha sido assustadora, uma seringa imensa, injetada no sítio da fratura. E o pior, no outro dia de manhã, meu pai me disse que não tinha ficado bem, e lá fomos nós para o hospital. Tinha sete anos, paguei as penitências antes de cometer os pecados.

    Aos dez anos, iniciei peregrinação pelo Rio Grande, determinada pela carreira do pai: Bento Gonçalves, cinco anos; Uruguaiana, um ano; Pelotas, interrompida por grave acidente de carro em Caxias, onde fiquei para tratamento e para completar o segundo grau.

    Minha adaptação em Bento não foi fácil, odiavam caxienses e, por consequência, o new kid on the blocks. O grandão tomou por hábito me aterrorizar e bater (só aterrorizava, pois eu fugia). Dona Therezinha diagnosticou e tratou o problema: se apanhares na rua, terás dose de reforço em casa. Apanhei, enfim, mas também dei umas boas porradas. Final feliz e integração social plena.

    Esse e outros episódios da época e da vida ficam para as memórias não acadêmicas (lançamento post-mortem, afinal, a polícia pode vir atrás). Muitos deles certamente contribuíram para a construção da personalidade e para as futuras opções de vida. Vejo hoje educandos em redomas e não posso dizer que o certo era aquele tempo, mas que atalhava a formação de cicatrizes e o alívio das culpas, ah, sim, atalhava. Bem, usei um pouco desse método com meus filhos, que apanharam e bateram muito no judô, de certa forma a luta da rua figurada.

    No ginásio encerrei internamente o assunto religião; mãe continuou por um tempo me mandando à missa e ao confessionário, mas terminou desistindo; eu só fingia ir até a igreja e ficava pelo centro, com amigos infiéis. Padre Ênio (o nome pode ser fictício) eliminou meu resíduo de crença. Era absolutamente ensandecido na restrição ao onanismo. Nas confissões aterrorizava a todos com as consequências da prática. Mais do que isso, era nosso professor de religião e fazia essa peroração para toda a aula. O cúmulo foi ter apontado um aleijado pela janela e ter nos dito que aquilo decorria do hábito de masturbação do pai do infeliz. Foi demais, fiquei com, digamos assim, a natureza, e larguei deus.

    Confesso que, por muitos anos, até entender do assunto como médico, fiquei com certo pavor das venéreas, por história de Padre Ênio. Contava que um amigo dele tinha ficado cego por se secar em toalha, em viagem de trem, usada previamente para secar o pinto de um herege com gonorreia.

    Minhas confissões ateístas me deixam com um pouco de medo, não de Deus, mas de seus representantes terrenos. Vá lá que se emita uma ordem para minha eliminação, nos moldes de Salman Rushdie. Não é vacina, mas afirmo meu profundo respeito aos religiosos que praticam o bem, desapegados de interesses mundanos, ajudando muitos desvalidos. Faço há vários anos algumas contribuições filantrópicas, pequenas mas consistentes. Uma delas é para a Fraternidade Missionária Franciscana Bernardina, que em Porto Alegre se dedica ao cuidado de crianças e jovens muito pobres. Antes de me executar, perguntem a Irmã Miriam Montenegro se não mereço o perdão divino.

    Lembro-me de que incomodava alguns professores na escola. Seguidas vezes, fui posto para fora da sala de aula, outras fui enviado à direção, mas não peguei suspensão, só ameaça. De novo tinha duas turmas de amigos, uma de caras mais velhos, dois anos adiante de mim na escola, que toleravam o pirralho. Debatia muita política com um desses amigos mais velhos, o sobrenome era Ghelen, se não estou enganado. Tínhamos muitas ideias semelhantes, mas eu era só brizolista, ele era comunista. Terminou por ir estudar na Rússia!

    E havia os amigos de minha idade, o Zico, Jorge, Dinho, entre outros. Introduzi o jogo de botão de melhor qualidade (jogava há anos em férias em Porto Alegre, com o primo Constantino e seus amigos) e passei longo período invicto. O Dinho era fisicamente parecido comigo, e por algum tempo nos apresentávamos como gêmeos. O Jorge tinha uma asma braba, que melhorou com um tratamento receitado por um especialista em Porto Alegre, mas ficou bochechudo e meio fraco dos músculos. Anos mais tarde, deduzi que usara corticoide por longo tempo, sistêmico; era o início do emprego dos ditos em tudo que era doença – em muitas funcionava espetacularmente, com os típicos efeitos adversos. Disseram-me que o Jorge morreu moço, com uma neoplasia.

    Andamos fazendo algumas boas travessuras. Alguns mais velhos simplesmente pegavam carros estacionados, com chave na ignição, e saíam com eles. Começou a dor bronca, mas eu juro que eu não saía junto. Ficaram com a chave do DKW surrupiada do carro do dono da churrascaria do clube, depois de dar umas voltas. O idiota aqui se dispôs a devolvê-la ao dono. Um dia depois, estava o brigadiano lá em casa, pedindo para meu pai ir à delegacia explicar como o pirralho de 12 anos estava envolvido com aquilo. O ambiente ficou pesado (bota pesado), mas não apanhei, acho que não apanhava mais. Fiquei preocupado com o pai quando entendi o que acontecia. Ele me pediu para confirmar o nome dos gatunos, mas todo mundo sabia qual era a turma.

    Mais adiante desenvolvemos granadas com bombas de São João encravadas em chuchus, que lançávamos em diferentes alvos. Fomos até a Zona, pelos trilhos, e lançamos uma barragem de granadas nas janelas, algumas abertas. Escrevendo, me lembro vivamente dos dormentes passando em alta velocidade embaixo de meus pés; eu era o menor e estava no fim da fila, ouvia os cachorros soltos atrás de nós, mas não errei nenhum passo. O último ataque de que participei foi em um jogo de vôlei no clube local. O time do União, de Porto Alegre, estava lá jogando contra um combinado da serra. Lançamos vários petardos por cima do muro e corremos. Não sei o que aconteceu, mas larguei definitivamente essas atividades terroristas. Os crimes prescreveram, e eu era de menor, esclareça-se.

    Meus amigos devem estar estranhando, pois o título e a introdução deste livro sugeriam que se tratava de memórias acadêmicas, e estão lendo memórias de um pivete. Convido-os a ir adiante, pois entrei na linha. Aliás, não foi nada tão grave, bobagens de adolescentes. Vendo essa agitação contemporânea, com os tais de black blocs ou similares no Brasil, reflito sobre a similitude de impulsos destrutivos. Eu não tinha nada de black bloc, não era bandido; era, enfim, uma criança. Mas segui, por um tempo, amigos adolescentes com tais impulsos. Acho que praticamente todos se deram bem na vida, um deles tem um nome nobre, e a empresa da família foi vendida por muito dinheiro. Possivelmente seja a incipiente disputa pelo poder, os pequenos garanhões querendo tomar conta da manada. Nada que o velho garanhão não resolvesse com alguns coices bem dados.

    Passando dos 13 anos, começaram as coceiras nos países baixos e as primeiras paixões. Lembro-me da primeira, em Caxias, antes dos dez anos, mas acho que nem me dei conta. No dia em que verifiquei como eram meninas debaixo das calcinhas, e vice-versa, no meu caso cuecas, houve algum erotismo no ar, mas não sabíamos o que realmente era. Aliás, as meninas ficaram com uma impressão errada sobre membros, imaginaram que estivessem sempre naquele estado túrgido. Membro túrgido! O que eu faço para fugir da censura.

    Voltando a Bento, uma nova paixão, por uma menina mais nova e talvez mais alta do que eu. Não me declarei a ela, mas contei sobre a paixão a sua irmã, minha colega, em excursão da escola. Ela tinha ido sentar do meu lado no ônibus, e só depois soube que ela, minha colega, era apaixonada por mim! Enquanto me preparava para reciclar as paixões entre as irmãs, fomos para Uruguaiana.

    Já estou por demais fora de memórias acadêmicas, mas conto a história final de Bento, entre dezenas que estavam embaixo das tábuas do assoalho do quarto ventrículo cerebral e eu nem desconfiava. Foi uma noite quente, muito quente, ficamos até bem tarde na rua conversando, muitos guris e gurias. Entre essas, havia uma mais veterana, talvez 16 ante meus 13 a 14 anos, vestida muito despojadamente, uma camisetinha sobre a pele, enlouquecedora. Minha espinha dorsal e outras estruturas estremeciam, mas não me atreveria a tomar qualquer iniciativa, a cultura era absolutamente opressora, ou pelo menos eu pensava que era. A conversa foi para caminhos absolutamente sensuais, com o grupo já diminuído pelos chamados paternos. Continuação em minhas memórias não acadêmicas, mas antecipo que não foi a primeira noite de um homem, como diria o Bill Clinton.

    De Bento fomos para Uruguaiana. Foi uma inesperada mudança cultural, pois havia muitas diferenças entre as cidades. O pessoal era muito mais amigável do que em Bento, pareciam mais soltos, felizes com a vida. Nas noites de sábado, no verão, uma boa proporção do povo estava no Centro, fazendo footing na praça, passava da meia-noite. Em Caxias e Bento, os gringos deitavam (e deitam) às nove, têm que levantar cedo para ganhar dinheiro.

    Eu já tinha uma noção da cultura gaúcha, dos pampas, pelo meu pai, madrinha Mercedes e tios Oto e Elsa. Mas lá vivi a dita cultura. Fui com o pai a várias fazendas, também em Alegrete, e conheci interessantes modelos semifeudais. A peonada era muito ativa e simpática. Aprendi a andar a cavalo e a camperear. Conduzindo uma ovelha desgarrada para o rebanho, tomei uma puteada do amigo da fazenda, pela pressão que estava pondo sobre a coitadinha. Ele pegou a ovelhinha e a colocou sobre a sela. Gaúchos sabem tratar bem ovelhinhas simpáticas.

    No colégio, D. Hermeto, público, bem cuidado, fiz o primeiro científico. Eu era o mais novo da turma, alguns colegas eram bem mais velhos. Correu tudo tranquilo, mas não me lembro dos professores e assuntos.

    A cidade era e continua sendo, obviamente, plana; andei muito de bicicleta lá. Com o vizinho e amigo Juarez, a rasgávamos de lado a lado, chegando perto das barrancas do rio Uruguai, onde ficava a muito bem frequentada Zona da cidade. Os contatos imediatos de segundo grau, também chamados de amassos, se davam no cinema – havia dois grandes e centrais, que lotavam nos fins de semana. Surpreenderam-me algumas meninas muito travessas, estava bem bom.

    Depois de um ano fomos para Pelotas. Novo choque cultural: encontrei sociedade com definidos traços aristocráticos, alguma afetação, mas posso ser injusto. Não havia a efervescência econômica de Caxias e Bento, até pelo contrário, as casas eram antigas e havia poucos edifícios novos. Chegamos no verão, e não arrumei turma, mesmo indo ao Clube Brilhante. Lá jogava xadrez com um rapaz com deficiência física grave, sequelas de traumatismo de parto, ele me contou; andava de cadeira de roda e tinha Coreia, diagnostiquei quando médico, dez anos depois. A cabeça era boa e jogava bem xadrez. Eu insistia muito com mãe e pai para terminar o científico em Caxias, algo que não era sequer considerado por eles. No fim do verão, fui passar uns dias em Caxias.

    Com um amigo mais velho, fomos para Criúva, distrito de Caxias, de carro, um DKW branco, herdado do pai dele, que falecera depois de prolongadíssimo câncer. Ele já tinha se acidentado em Caxias e, na ida a Criúva, na serra entre Caxias e São Marcos, fazia curvas de maneira inexplicável, em alta velocidade. Cravei as unhas no puxador da porta e meus pés quase saíram pelo assoalho. Na manhã seguinte, saímos cedo para caçar perdizes e passarinhos. Lembro bem que era um dia muito claro, ensolarado, sem qualquer nuvem, e que meu amigo andava ligeiro na estreita estrada de terra que subia e descia as coxilhas dos campos de cima da serra.

    Minha próxima e muito breve lembrança é a de um médico puxando e costurando minha língua em um hospital em São Marcos – tenho a impressão de ter ouvido também minha mãe. Das uma a duas semanas seguintes, só tenho fugazes lembranças. Depois me contaram que, no topo de uma coxilha, demos de frente com uma camionete Rural Willis, que levava o leite do tambo para a cidade. Não saí pela janela porque a arma de pressão, onde ficou desenhada minha face, impediu. Múltiplos talhos, a língua só não foi amputada porque se quebraram dentes, um monte deles, três na frente e muitos atrás, pela violenta oclusão.

    Nunca perdi a consciência, mas a comoção cerebral foi avassaladora. Amigos que tomam ciência dessa história invariavelmente dizem que então está tudo explicado, mas não me atrevo a perguntar o que é, tenho medo de que seja a origem de minha função cerebral oblíqua, ou os furos em meu superego. Com um misto de satisfação por estar vivo e com dó de minha futura adaptação na escola em Pelotas, com a mobília toda quebrada, pai e mãe deixaram-me ficar em Caxias, para tratar a dentadura e terminar o científico. Até hoje sinto a dor da decisão. Fiquei com tia Diva, desprendida stepmother, que me alimentou e lavou minhas cuecas por dois anos. Dividi o quarto com meu primo Duda, oito anos mais novo; ele não tinha autoridade para me correr do quarto, e foi muito parceiro.

    No restante do científico em Caxias, no famoso Cristóvão de Mendonza, impressionei-me com alguns professores, desafiando-os por vezes e simplesmente incomodando outros. Ali funcionou o laboratório da vida adulta. O professor de religião pediu demissão e abriu um bar depois de intermináveis debates que tive com ele sobre a existência de Deus. Ele propunha um complexo modelo em que Deus se dividia entre todas as coisas no começo da história, sendo esta um processo de progressivo retorno ao ser único, divino. Deus, enfim, seria o próprio homem no futuro. Lembro-me das duas perguntas que lhe fiz: Por que Deus tinha que estar no início e no fim? e Não dava para ser isto tudo sem ele?. E a outra: Por que motivo tinha proposto toda esta confusão, pois, se começava e terminava com ele, porque não ia Deus tratar de seus assuntos sem todo este martírio intermediário?. Coleguinha menina pediu-me: Flávio, para com isso, estou ficando cheia de dúvidas!

    Li Christopher Hitchens, que, curiosamente, teve epifania similar à minha antes dos dez anos de idade, mas depois passou a destacar a malignidade das religiões em seu livro God is not great: how religion poisons everythink. Eu debito a malignidade eventual das religiões aos defeitos do bicho-homem – religiosos são homens simplesmente. Imagino que a mensagem de querer o bem de outrem, presente em todas as religiões, ajudou e ajuda, ainda, o processo civilizatório. E é um consolo para o desespero humano. Também rendo meu reconhecimento às magníficas obras religiosas na educação, saúde, caridade e outras.

    No meu hábito médico de conversar muito com doentes sobre sua vida, soube da história de D. Luiza, em torno de 50, consumida por vida de dificuldades e internada na UTI com infecções graves decorrentes de AIDS, antes dos retrovirais. Tinha sido contaminada pelo genro, que também contaminara sua filha, que já morrera. Era evangélica fervorosa, talvez o único consolo que encontrasse nessa triste realidade que incluía traição, perda da filha e doença. Atribuía a doença a seu mau comportamento.

    Igrejas e templos são muitas vezes grandes consultórios coletivos em que se alivia o sofrimento de muitos. Mas o fanho continua fanhoso, e o manco, mancando! E igrejas e seus pastores ficam mais ricos do que sua própria religião acharia razoável. Hitchens discorda das benesses das religiões, demonstrando que seu lado ruim produziu muito estrago. Só estudos controlados poderão estabelecer a razão entre risco e benefício, deixa para lá. De qualquer forma, as benesses e os malefícios produzidos por todas as religiões demonstram que elas são human-made. Deus, se existisse, não iria errar tanto.

    Um ponto levantado por Hitchens me provocou, no capítulo em que demonstra que as religiões em geral abusam de crianças em sua estratégia de criar crentes. Todos nós vivemos, por um tempo, apavorados com o fogo eterno do inferno, certamente uma perspectiva torturante frente a nossa vida infiel. Li Dante depois de velho. Se já não fosse ateu, viraria santo, para fugir do inferno do dito. Se tivesse sabido antes que no islamismo o inferno não é eterno, talvez tivesse me convertido.

    O irmão de Hitchens e muitos outros acham que ele foi um crítico excessivo da religiosidade. Interessantemente, sua visão sobre os caminhos da humanidade livres das inculcações religiosas vislumbra a combinação entre livre iniciativa e ciência como o caminho virtuoso. Bem, não disse bem assim, bonito assim digo eu, escrevi aqui e espero ser citado, junto com ele, no futuro.

    O livro do Hitchens me ensinou algumas coisas, como que os dez mandamentos do catolicismo derivam de 15 dos hebreus, provavelmente the editor recommended to shorten the text antes de publicar. Alguns dos mandamentos são basilares para a civilidade, outros poucos complicam nossa existência. Do livro do Hitchens, cito historieta: Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo. Hitchens perguntou, o que Deus fez no oitavo dia? Eu estenderia essa pergunta para o que tem feito ao correr dos milênios? Será que no fim tudo não vira, quando virarmos deuses, uma imensa TV digital com milhares de canais para ocupar o dia, à semelhança da atividade divina? Ou ele tem pelo menos uma mesa de sinuca para se divertir com os bons cristãos?

    Conto outra historieta sobre religião, de Roberto Campos, em Lanterna na Popa. Tinha sido ele seminarista. Muitos anos depois, perguntou ao arcebispo de Belo Horizonte, contemporâneo do seminário, por que colega brilhante à época do seminário continuava pároco de pequena igreja, sem ter feito carreira eclesiástica. Respondeu-lhe o arcebispo: O padre tinha uns problemas: gostava de um rabo de saia, mas isso dava para relevar; era muito esquerdinha, mas isso dava para relevar; bebia um pouco de vinho a mais do que o da missa, mas isso dava para relevar; mas não acreditava em Deus, isso era demais!. Hitchens, um ano mais velho que eu, morreu de câncer de esôfago em 2011 – fumava. Aos apelos para conversão religiosa e conforto nos dias finais, respondeu que ninguém iria pedir a um religioso o inverso; tanto uma como outra situação seriam torturantes. Em breve nota final sobre religiosidade, se não conseguirem viver sem algum deus, recomendo a conversão para o helenismo. Lá há deuses e semideuses para todos os gostos, e os deuses gostam de deusas!

    Voltando aos aspectos científicos e políticos, o professor de Português, muito bom, organizou uma atividade de comunicação. Ali fui responsável pelo noticiário da TV, como redator e locutor. Preparei longo texto em que culpava os americanos pelas desgraças do mundo, mostrando que o complexo industrial americano criara e depois sacrificara Kennedy, por interesses contrariados. Apresentei pesada análise sobre a perda de nossas liberdades durante o regime militar que então vivíamos. O amigo Celso Jacobus, locutor comigo, declarou ao fim que lera o texto, mas não concordava com seu teor. O professor pediu-me para rasgar o texto e ficar quieto; eram os idos de 1968, quando se exacerbou a ditadura.

    Começamos a beber e a ter outros interesses. Minha visão política de esquerda ficou por aí, guardada em um engradado com coisas por fazer, até minha libertação intelectual, com pleno entendimento sobre as relações econômicas, expressão maior das relações humanas. A leitura de Popper, Paulo Francis, Roberto Campos e outros muito me ajudou. Hoje sou um liberal, li há pouco, e gostei, um livro (dado por meu filho Paulo) sobre as ideias de Ludwig Von Mises.

    Mas voltando ao Científico, havia outras queridas professoras, como a de química, uma paixão. Sentado meio ao fundo da sala, eu a provocava constantemente. Ela de pé, vestido tubinho (eu poderia ter sido estilista de moda), acho que curto para a época, pele morena em cabelo claro, com os punhos nos quadris, mãos espalmadas em reverso, pernas longas e bem torneadas, pé direito em abdução, batendo no chão, com um corte de sorriso semioculto, pronunciou-se: Já chega, Flááávio!. Ah, minhas outras memórias...

    A vida social foi intensíssima. Não havia xerifes ou eles dormiam. Tomávamos canha diretamente do garrafão e saíamos pela cidade, a pé, com violões, para fazer serenatas. Muitos de meus amigos eram excelentes músicos e cantores; eu não tocava nem toca-discos. Algumas vezes não abriam as janelas, e em muito poucas vezes ouvia-se reclamação. Em geral a donzela aparecia, abanava para nós, por vezes nos convidava para entrar e tomar um chá, com a mamãe, que o preparara.

    As reuniões dançantes se davam em garagens – essa gurizada de hoje não tem ideia do que era bom. Mas as donzelas eram preservadas, pelo menos em seu bem mais precioso, o que levava os sanguíneos adolescentes a buscar outras soluções. O medo incutido pelo padre Ênio, anos antes, não impediu o pequeno desastre em minha iniciação, resolvido pelo meu sábio tio Júlio. Não ficaram sequelas, que eu saiba. Lembrei-me de que, quando ainda pequeno, com menos de dez anos, eu e meus amigos ficávamos de campana em um ponto de táxi, na esquina da praça, à noite, vendo respeitáveis cidadãos caxienses entrarem no Ford 51 (que carro!), que automaticamente ia para a Zona, o passageiro não precisava nem falar.

    No terceiro ano do Científico, eu era presidente da turma e organizei uma excursão de formatura. Fomos à busca de recursos com um livro-ouro, tivemos uma primeira doação substancial, mas depois murchou. Só deu para ir para Tramandaí, parando em duas casas dos pais de um colega. Houve muitas negociações para que as gurias fossem; conseguimos que a professora de Biologia fosse conosco. Como presidente, me davam a palavra para convencer o pai refratário, talvez dissesse que todos os rapazes iriam para o seminário depois.

    Uma das casas era velha e com poucos recursos; ficamos todos amontoados na outra, mas não dormimos por três dias. Foi uma loucura. De noite, no toca-discos portátil, um de meus colegas desenvolveu uma habilidade que iria para o Guiness: tocava continuamente só a parte do carro das Curvas da Estrada de Santos, do Roberto Carlos. Levantava o braço e o reposicionava no sulco exato. A professora não aguentava mais, pediu-me para interceder, pelo amor de Deus. Entre a conversa no descanso em uma cama (com várias colegas, sem nada do que vocês estão imaginando) e no retorno a Caxias, no ônibus, começou meu primeiro namoro formal.

    No saldo, a escola pública gaúcha foi-me excelente, do jardim de infância ao terceiro Científico. No último ano do Científico, dava aula de Física e Biologia a colegas de turma, estudando por conta em excelentes livros didáticos do curso pré-vestibular Mauá, onde meu primo, o Beleza, e um querido amigo Paulo Simões militaram por décadas.

    Em 1969 ingressei, na primeira tentativa, na Faculdade de Medicina da UFRGS, em vestibular unificado das cinco ou seis faculdades de Medicina de então.

    Minha turma médica, a ATM-74, sofreu diversas reformas de currículo e de estrutura da universidade. Começamos em estrutura curricular e de universidade antigas, com disciplinas ligadas às enfermarias, Faculdade de Medicina tão somente. Com a implantação da reforma universitária, foram-se os referenciais; muitos professores que eram da FAMED passaram ao Instituto de Biociências, que passou a dar aula para todos os cursos da área biomédica. A FAMED perdeu a casa e, quase, a identidade. Todas as disciplinas de clínica e cirurgia foram agrupadas em disciplinas únicas.

    Alguns professores esforçaram-se para tocar a reforma, introduzindo inovadoras técnicas de ensino, como o professor Waldomiro Manfroi, que, como regente de Medicina Interna, introduziu seminários que muito apreciei. De bom houve o início de internato de um ano. Prova provada da confusão é que metade de minha turma tem A, e outra metade, B em Cirurgia, por decisão do secretário do departamento. Como corolário, decidimos não ter paraninfo ou homenageados. Foi um choque local e nacional, até a revista VEJA noticiou, mas com um recado fatal: não se consultem com esses médicos, eles não aprenderam nada!

    Nesse cenário anárquico, aproveitamos para traçar nossos próprios caminhos. Eu resolvi aprender medicina antes que me ensinassem. Precocemente tornei-me rato de enfermaria da Santa Casa (a tradicional enfermaria 29), matando outras aulas para acompanhar pacientes, com orientação de Mário Rigatto, Rubens Maciel, Darci de Oliveira Ilha, Domingos D’Ávila, Ana Maciel Alves, entre outros. Também frequentei por algumas semanas a enfermaria 38, de onde se originou a cardiologia científica em nossa universidade.

    Eu estudava muito, por conta, queria aprender toda a medicina, mas rendeu bem mais o aprendizado de Medicina Interna – li grande parte do Harrison. Tenho ainda as fichas, mais de mil, em que resumia os assuntos, indo de cardiopatia isquêmica até traumatologia do joelho. Trabalhava como interno em diferentes locais, como no Pronto-Socorro Floresta, Pronto-Socorro Municipal e Hospital Presidente Vargas, exercendo, no sexto ano, atividade médica plena, como cardiologista (o crime de charlatanismo está prescrito, afianço). Na Farmacologia, tive minha vivência de graduação mais intensa, que descrevo já como parte de minha atuação docente, precocemente iniciada.

    Reescrevi boa parte da medicina da época em fichas; a doença acima está resumida em 30 fichas; não era tão diferente, estava errado na época como continua errado hoje (colesterol como risco causal).

    Quando estava no quarto ano, enfrentei uma de minhas muito dolorosas perdas. Fomos, a família e minha namorada, Helena, a Caxias ver meu tio Júlio, irmão de minha mãe, casado fazia pouco, grande sujeito, na época com 32 anos. Estava havia um bom tempo doente, com febre, inapetência e dores no corpo, predominantemente na região lombar. Estava sendo tratado para febre reumática, por ter também um VSG muito elevado. Lembro-me como se fosse hoje: resolvi tirar uma história médica completa e fazer exame físico completo, escrevendo-os em uma folha. Pelo meu aprendizado das ditas fichas e da enfermaria 29, vi facilmente que o diagnóstico estava errado, não tinha sequer um achado maior de febre reumática.

    Providenciei seu encaminhamento para Porto Alegre, onde se internou no Instituto de Cardiologia sob os cuidados do professor Domingos D’Ávila, meu ex-professor de Semiologia e hoje pesquisador do Estudo PREVER, na PUC. O residente que fez a baixa pegou simplesmente minha folha e a colocou no prontuário como nota de baixa. Professor Domingos concordou que não era febre reumática e pediu vários exames. Andei com o tio por Porto Alegre, na ambulância do Pronto-Socorro Floresta, pois ele não conseguia mais caminhar, para fazer exames. O raio-X de coluna sentenciou: havia metástases e colabamento de vértebras lombares. Uma punção biópsia demonstrou ser um carcinoma. Ainda procuramos alguns sítios primários sem sucesso, e o levamos de avião a Caxias, para morrer.

    A dor foi muito grande, em particular de tia Ermelinda, minha tia-avó, que não se casara, e criara o tio substituindo minha avó, que tinha adoecido relativamente moça. Na noite em que o tio Júlio morreu, eu estava no Hospital. Tia Ermelinda segurou sua mão até o fim. Vi uma nota do médico no prontuário, sugerindo a colega que se tentasse alguma quimioterapia. Era uma enorme de uma bobagem, havia pouquíssimos quimioterápicos na época, e mesmo hoje não haveria perspectiva de que algum fosse eficaz naquele estado.

    Alguns anos depois, quando residente, fui ver uma prima em Caxias, que também estava bem doente, com grande emagrecimento e nervosismo. Novamente avaliei-a como médico, e o diagnóstico foi moleza: tinha sopro na tireoide, tal o grau de hiperfuncionamento da dita. Ainda por umas semanas, soube, pela tia Diva, que o médico que cuidava dela não concordara com o diagnóstico, mas depois de um tempo se rendeu.

    Essas histórias médicas apontam a incompetência dos colegas à época. Não se restringia a Caxias, por certo. Persiste ainda hoje, e abordo o assunto no capítulo 12, mas certamente é menos frequente. Por essa e por outras, trabalhei toda a vida para não ser eu mesmo um médico sem noção e talvez evitar que outros o fossem.

    Há infinitas outras histórias divertidas e picantes, paralelas à da vivência acadêmica propriamente dita nesse período. Talvez as conte nas memórias não acadêmicas, mas por hora estão censuradas, pois professor sério como eu não brinca com os colegas da época e que ainda o são hoje. Conto somente uma daquele período, ocorrida com meus veteranos, na famosa e imensa Sala 4. Professor de uma matéria muito boring (e a ordem dos fatores não altera o produto) lia as aulas sentado em balcão elevado na dita sala, pós-almoço, janelões cerrados à esquerda, calor, alguma poeira no ar, tom monocórdio, CDFs a copiar incoercivelmente na primeira fila, predominando o silêncio absoluto decorrente do sono pós-prandial dos demais. O professor era meio surdo e usava um aparelho. Pois alguns bandidos da turma começaram a se agitar ao fundo, mimetizando conversa, movimentos e gargalhadas em absoluto silêncio. O professor primeiramente tentou regular seu aparelho auditivo, mas, deduzindo que estava estragado, resolveu exercer a disciplina incisivamente, gritando silêêêêênnnnnciooô! Se não ficarem quietos, ponho-os para fora!. CDFs não entenderam nada, e os dorminhocos acordaram-se apavorados.

    A família Fuchs formou-se com Sandra (1977), Felipe (1982) e Paulo (1988). A jornada tem sido muito agradável. Sandra, inicialmente minha aluna e agora minha mestra, médica pediatra, doutorou-se em Epidemiologia, seguiu a carreira docente e de pesquisadora e associou-se a mim, também profissionalmente, no fim dos anos 80, ingressando na universidade em 1993.

    Felipe, 32 anos, com residência em Medicina Interna (HCPA), Cardiologia (Instituto de Cardiologia), especialização em Cardiologia Intervencionista (HCPA), mestrado em Cardiologia (um dos últimos orientandos do professor Jorge Pinto Ribeiro), é presentemente Fellow de Cardiologia Intervencionista na Universidade de Toronto (Hospitais Mount Sinai e Toronto General). Sobre seus primeiros seis meses lá, avaliou a preceptora, Dra. Susanna Mak: I have been extremely impressed with Dr. Fuchs. He is very disciplined in his thought process and seeks evidence and rationale for all of his activities. His technical skills (cardiac catheterization) are excellent and he has quickly made himself a valuable, agreeable, and cooperative team player.

    Paulo, 26 anos, é economista e tem MBA pela ESPM. Seu irredutível objetivo é ser empresário, e já o é, liderando duas empresas. Bem, tanto quanto eu saiba, todos adoram o Paulo, já está tendo muito sucesso. Incrível, passou a ler todos os livros de liberais americanos e do mundo, diz-se um libertário e será fundador do Partido Novo. Talvez me propicie jogar uma bolinha no campinho do Lula no Palácio da Alvorada.

    Família Fuchs no aquecimento e com os produtos

    A família circunstante foi aumentada pela família de Sandra, muito próxima de nós. Mas como a de meus pais, com a típica diáspora, cada

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