Várias tessituras: Personagens marginalizados da literatura
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Várias tessituras - Marcos Hidemi de Lima
Reitora:
Berenice Quinzani Jordão
Vice-Reitor:
Ludoviko Carnascialli dos Santos
Diretor:
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello
Conselho Editorial:
Abdallah Achour Junior
Daniela Braga Paiano
Edison Archela
Efraim Rodrigues
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello (Presidente)
Maria Luiza Fava Grassiotto
Maria Rita Zoéga Soares
Marcos Hirata Soares
Rodrigo Cumpre Rabelo
Rozinaldo Antonio Miami
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Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos
Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
L732v
Lima,Marcos Hideme de.
Várias tessituras [livro eletrônico] : personagens marginalizados da literatura/ Marcos Hidemi de Lima. – Londrina : EDUEL, 2015.
1 Livro digital : il.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7216-752-9
1. Personagens literários. 2. Exclusão social na
literatura. 3. Literatura - História e crítica. I. Título
CDU 82.09
Direitos reservados à
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Campus Universitário
Caixa Postal 10.011
86057-970 Londrina PR
Fone/Fax: (43) 3371-4673
e-mail: eduel@uel.br
www.uel.br/editora
2015
À Márcia, ao Vinicius e aos meus pais
"O que será que será
Que vive nas ideias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido"
O que será
(À flor da terra),
Chico Buarque
SUMÁRIO
O personagem e a estriga: um limiar entre vida e arte
Esclarecimento inicial
Figuras femininas em édipo rei
A identidade trágica do Jaguaretê
Quando eles se amam
Narrativa misógina em angústia
Malandros de antanho e malandros de gravata e capital
Marcas da ordem patriarcal em S. Bernardo: o dilema do favor
Zero: uma alegoria do brasil
Mulher, mulata e pobre: a estigmatização de clara dos anjos
O preto no branco
Uma mão lava a outra
O personagem e a estriga: um limiar entre vida e arte
Frederico Fernandes¹
Minha relação acadêmica com Marcos Hidemi de Lima começou quando eu, um professor recém-concursado de Teoria Literária da UEL, fui procurado por ele para orientar sua monografia de especialização em Literatura Brasileira. A ideia inicial era de que ele escrevesse sobre Noel Rosa, mas creio que por uma opinião de que a canção de Noel não se configuraria como um objeto de estudo
da Literatura, à época em que o culturalismo se formava na mentalidade do curso, ele acabou se concentrando na Ópera do Malandro, de Chico Buarque. Tanto Noel como Chico produziram canções e, no caso do segundo, além de canções, romances e dramas que retratam um herói em conflito com o mundo. A opção de estudo de Marcos já assinalava para a carreira acadêmica que ele vem trilhando há mais de uma década. Tendo como inquietação gêneros convencionais dos estudos literários como o drama, o poema, o conto e o romance, e outros nem tanto, como a canção, Marcos voltou-se aos marginalizados
na literatura, tendo como perspectiva analítica o culturalismo. A crítica e a história literária brasileiras têm sido bastante profícuas em demonstrar como a literatura nacional constitui-se de sujeitos desajustados e em conflito com o mundo capitalista que os tenta reificar. Nesse sentido, a opção de Marcos se alinha à de intelectuais como Antonio Candido, cuja influência é sentida neste livro tanto pela inevitável necessidade de dialogar com seus ensaios como pelo conteúdo poliédrico e, também, pelo título que lembram a clássica coletânea de ensaios intitulada Vários Escritos.
Várias tessituras, por sua vez, apresenta um norte analítico muito claro: o das personagens marginalizadas. Assim, são sujeitos desajustados no mundo que são o fio condutor desta obra. Seu ponto de partida é a Grécia Antiga, com Édipo Rei, mas sua zona de conforto é, indubitavelmente, a literatura brasileira. O arco de leitura de Marcos é composto por dramaturgos, poetas, romancistas contistas e compositores musicais. Para tanto, seu referencial crítico-teórico é também vasto: além de Candido, traz Marilena Chauí, Roberto DaMatta, Silviano Santiago, Affonso Romano de Sant’Anna, Roberto Schwarz, além de pensadores como Michel Foucault, Anthony Giddens, Stuart Hall, Georges Duby entre muitos outros. A multiplicidade de temas e ideias aqui apresentados não admite dúvidas quanto a um modus operandi típico da crítica literária brasileira proposto nesta obra. Seu autor assimila e incorpora ideias de correntes várias que convergem para um ponto de vista semelhante, com a coragem para enfrentar o pensamento monolítico, dando vozes a intérpretes nacionais e estrangeiros.
Se por um lado, a polifonia teórico-crítica é tida por boa parte da academia europeia e norte-americana como uma modalidade desvirtuada de análise, no caso brasileiro, ela – quando bem apropriada, como a faz Marcos – justifica-se pela necessidade de uma alteridade formadora
. Trata-se, de modo sucinto, de uma apreensão da própria cultura pela diferença do outro. É no estranhamento de si no fato de não se reconhecer enquanto sujeito de um habitus, que o intelectual tem parâmetros para indicar o que lhe inquieta. Aristóteles, em uma de suas primeiras obras, Protepticus, observava que o pensador deve ser um estrangeiro em sua própria terra, distanciando-se da ágora e tapando os ouvidos para o rumor da multidão. Por isso, escrever sobre cultura brasileira dentro do Brasil requer o diálogo constante com pensadores de outras línguas e culturas como forma de entender melhor o habitus do próprio intérprete. Muitas vezes, cabe fazer um parêntese, pois o diálogo
com o estrangeiro se dá numa via de mão única, sendo raros os intelectuais nacionais lidos e debatidos no exterior. A alteridade formadora condiz, em um segundo momento, com a aclimatação de ideias à temporalidade nacional, em um tipo semelhante de obnubilação brasílica
, como a definiu o crítico cearense Araripe Júnior na segunda metade do século XIX. Pensar a crítica a partir daí não deixa de ser um exercício interessante, cujo resultado aponta para a contínua possibilidade de leituras de clássicos e de textos menos ajustados ao cenário estrangeiro, como o samba, por exemplo, tratado no capítulo 5 deste livro, também a partir de teorias e críticas vindas de fora.
A roca sobre a qual Marcos se debruça para fabricar suas tessituras tem como principal estriga o estudo do personagem. Mas o que diz o conjunto de personagens por ele abordado? Por trazer como tema a questão da marginalidade, existem duas forças que vão se interpor ao longo deste livro: um movimento do personagem que vai da margem ao centro e seu oposto, numa direção centrífuga. Daí, Várias tessituras se abre ao exercício conceitual do personagem, levando a percebê-lo não pelo diapasão convencional com que os manuais de teoria literária o tratam, mas como uma condição anímica. Entender o personagem nesses termos implica assimilá-lo para além de um estado incorpóreo e, por conseguinte, espiritual, condicionando-o a um campo de ação, fictício ou poético, no qual ele se materializa e manifesta vida. Todo ser dotado de movimento, manifestação de vontade e que atua sobre a natureza é dotado de uma alma. Por isso, o personagem é a maneira como a anima se exprime na natureza. Ele é um limiar entre o mundo (condição de ação) e a alma (condição do agir).
Do ponto de vista etimológico, personagem vem da palavra latina persona, que era uma máscara utilizada no teatro romano, possivelmente, para amplificar a voz do ator, pois, sendo feita de cerâmica ou madeira, também funcionava como uma caixa de ressonância. A palavra persona no mundo antigo, desse modo, era empregada no sentido de soar através de
. O Dicionário Etimológico da Oxford indica que a origem da palavra persona pode estar relacionada ao etrusco phersu, cujo significado é máscara, mas também não descarta a possibilidade de ela vincular sua origem ao mundo grego, sobremaneira, à deusa Perséfone. Mesmo não havendo certeza dessa relação, há uma afinidade bastante evidente entre o mito de Perséfone e o conceito de personagem que busco pespegar para a apresentação de Várias tessituras.
Perséfone é o limiar entre as profundezas e o plano terreno. Sendo filha de Zeus e Deméter, a deusa da agricultura, sua beleza encantou Hades, seu tio, que a sequestrou e a seduziu, esposando-a. Ela passa, então, a habitar o mundo dos mortos por seis meses (outono e inverno), ao lado de seu marido, e outros seis meses o plano terreno dos vivos, cuja beleza está associada à primavera e ao verão. A capacidade de transitar entre dois mundos é própria de uma divindade e situa-se além daquilo que a natureza humana permite aos mortais. É pela possibilidade do trânsito que a deusa vai assumir papéis diferenciados: ora volta às origens maternas que celebram a vida, ora está ao lado de seu marido – de onde vigia o reino dos mortos. Ao longo de seu deslocamento, a beleza de Perséfone que tanto encantou Hades, como também a fez rivalizar com Afrodite, a bela deusa do amor, mantém-se inalterada. A mudança de Perséfone não é física, mas tem a ver com a mudança de uma práxis. Trata-se do ato de agir no plano terreno e no subterrâneo e, também, sobre o que é produzido a partir daquilo que é feito nos dois mundos: o renascer da vida e o aprisionamento das almas.
O personagem é, a rigor, tudo aquilo que, uma vez dotado de anima, age entre dois planos, sem que para isso tenha que necessariamente modificar sua aparência. Por isso, o conceito francês do século XV de ligá-lo à estatura ou às aparências, colocando em evidência marcas corporais, serviu mais para planificar um modelo de belo/bem e feio/mal, que tardiamente foi desconstruído pela poesia baudelairiana. O sentido último do personagem é o agir no mundo dos homens, mas, uma vez servindo à arte, o agir do personagem não se realiza enquanto um produto, finda-se em seu próprio ato de fazer.
Os personagens épicos são, dessa forma, o exemplo de um fazer que se finda em si próprio. O que cria um dos heróis mais conhecidos de Homero, Odisseu? Não há nada produzido em sua trajetória que possa ser tomado como produto, algo concreto a ser consumido. Odisseu é o meio pelo qual se dirige o homem a uma experiência de desvelamento, ou a-lethéia como diriam os gregos, ele é o contato com uma forma de verdade. Por isso, ele não diz respeito a um acontecimento particular, mas alça à universalidade. Seu fazer não é prático no sentido em que ele não gera um produto como um operário em uma fábrica geraria, mesmo que ambos não prescindam da técnica. Seu plano de transição não é o do pensamento para o concreto, mas o oposto. O fazer de Odisseu será sempre a condição de uma experiência, por isso, seu campo é, como de todo personagem, o da poiésis, e não o da práxis.
Neste entendimento mais stricto de personagem, torna-se possível afirmar que, sob forma de máscara, ela constitui-se, grosso modo, como a representação de seres dotados de anima: homens, monstros, deuses, bichos ou objetos que ganham vida. Reside nisso sua condição sine qua non de existência, pois sem alma, isto é, sem a energia que emana do eu
, não é feito o trânsito entre mundos, nem realizada a ação. Em outras palavras, sem alma não há poiésis nem práxis.
Entre todas as artes, a literatura e o teatro parecem ter conferido ao personagem o campo mais fértil da criação. Pode-se dizer que neles, o personagem pôde atingir um grau elevado de aperfeiçoamento técnico-artístico, no sentido em que é trabalhado pelo artifício linguístico para a construção de um corpo dotado de anima, por meio do qual irá se desenvolver a ação. Sendo corpóreo, o personagem parece se localizar no plano oposto ao do abstrato. Mas é falaciosa a ideia de que abstrato e imaterial tenham uma mesma natureza. O sentido de abstrair
em nada tem a ver com o de desrealizar/desmaterializar, pelo contrário, abstrato significa extrair algo de alguma coisa
, o que implica, necessariamente, uma conexão entre dois corpos. Assim também, há personagem na lírica, na pintura, na música e demais artes, abstratas ou figurativas.
O teatro não é apenas a base do cinema, no qual o mundo ficcional tende a se apresentar o mais real possível, como também da narrativa literária, em que a palavra escrita permite uma densidade ao personagem por meio de técnicas de composição diferenciadas, como ela não terá em outras artes. Na literatura, a composição do personagem é dotada das mesmas características do personagem em palco-cênico, porém, traduzida em palavras. Aí salta à vista uma diferença substancial entre o drama e alguns gêneros literários como o romance e o conto, por exemplo. A experiência de lê-la não é a mesma de assisti-la, porque sendo o tempo da leitura mais demorado em relação ao do filme ou do espetáculo teatral, ele permite uma familiaridade maior com o personagem. A técnica de construção do personagem literário sobrepõe dimensões espaciais (como fizeram os naturalistas), temporais (como a narrativa épica), psicológicas (como no romance moderno) e metanarrativas (ao refletir sobre seu próprio processo de construção ou desfragmentação verbal).
Sendo sua existência marcada por uma técnica, o personagem encontra-se em um devir, suas possibilidades de combinar tais dimensões são inúmeras, nas várias artes em que se faz presente, tanto como as experiências humanas que exibem. Não é demais lembrar que as escolas literárias não deixam de enfatizar técnicas específicas de composição de personagens. Por exemplo, o herói romântico, o naturalista e aquele composto na contemporaneidade, no que diz respeito ao sentimento de mundo, às aproximações entre ação e composição espacial, aos argumentos sobre a verdade e, consequentemente, às identidades, variam em graus diferenciados.
Assim, metaforicamente, o personagem, literário ou fora da Literatura, nunca deixou de ser uma caixa de ressonância, composta sob as mais diversas técnicas. É ele o grande catalisador do tempo e do espaço que, constituindo-se enquanto o limiar entre o eu
e o mundo, será uma contínua produtora de experiência e desvelamento dos acontecimentos, produzindo um discurso de verdade. Cabe ao crítico não se deixar seduzir pelo canto da sereia que invoca a figuração e a aparência. Marcos parece tapar bem seus ouvidos com a mesma cera de Odisseu para este canto. O personagem não é apenas um corpo, mas um trânsito, um ser dotado de dinâmica que, ao se mover, produz poesia e desvela o mundo. É nas relações espaço-temporais pelos quais a verdade de mundo se constitui e se renova que a anima do personagem se mostra ao intérprete e crítico da obra. Captar essa energia corresponde a convidar o personagem para o íntimo de seu intérprete. O personagem transforma-se, então, numa espécie de amigo, não no sentido da cordialidade, mas da amizade que, como afirma Agamben, em seu O que é contemporâneo e outros ensaios, é a capacidade humana de sentir com o outro (consentir) e de compartilhar/dividir experiências (condividir). A amizade, nesses parâmetros, é a prerrogativa para o exercício da vida política.
Ao sobrepor suas lentes sobre movimentos e ações dos personagens, Marcos posiciona a literatura no campo fértil da criação humana e de investigação das humanidades, produzindo um livro de interesse tanto para estudantes como professores. Os autores aqui citados não deixam de criar, a partir de técnicas específicas, um personagem-perséfone. Paulo Honório e Madalena, Édipo e Jocasta, Raul e Saul, Marina e Luís da Silva, o malandro do morro e o onceiro do sertão, José e Rosa, Clara e Cassi, Rosalina, Quiquina e Juca Passarinho...vivem, metaforicamente, o trânsito das tensões castradoras do ser para o gozo da vida, tornando a seu modo a estriga da tessitura-narrativa. Apresentar os vários nós e amarras dessas tessituras-textos-narrativas é a grande virtude deste livro.
1 Professor de Teoria Literária do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da UEL, professor visitante junto