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Os desvãos da ordem patriarcal
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Os desvãos da ordem patriarcal

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Se na ordem patriarcal núcleo e nebulosa não dialogam, no máximo convivem em razão de circunstâncias de interesses sociais e individuais, não é o que ocorre com a literatura, como mostra Marcos Hidemi de Lima em 'Os desvãos da ordem patriarcal'. Por meio da abordagem dos romances 'Dom Casmurro' (1899), 'Clara dos Anjos' (1948), 'São Bernardo' (1934), 'Crônica da casa assassinada' (1959) e 'Ópera dos mortos' (1967), o autor põe em cena narrativas de diferentes épocas e revela o diálogo intenso mantido entre as obras no tratamento dispensado à força da estrutura patriarcal no seio da sociedade brasileira, não obstante os abalos e as rachaduras intensificadas com o passar dos anos.
LanguagePortuguês
PublisherEDUEL
Release dateJun 1, 2017
ISBN9788572169103
Os desvãos da ordem patriarcal

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    Os desvãos da ordem patriarcal - Marcos Hidemi de Lima

    REFERÊNCIAS

    METONÍMIAS SOCIAIS

    Miguel Sanches Neto ¹

    1.

    Uma das formas de entender a literatura brasileira moderna é como tentativa de passar a limpo os valores estabilizados em nossa formação. A modernidade teria, assim, um projeto de desconstrução de ciladas conceituais e comportamentais, que insistem em nos prender ao trágico histórico de sociedade escravagista. Nesta linha, o estudo da literatura nunca é apenas o estudo de literatura, mas uma reflexão extremamente atual sobre as reconfigurações das relações sociais no país ao longo do tempo. E o que vem sob o rótulo de estética se revela com um valor ético muito forte.

    Se nem toda a literatura é engajada, a sua leitura crítica pode, e deve, levar em consideração o engajamento, promovendo uma compreensão transliterária dos produtos artísticos.

    Não há definição mais precisa deste papel do escritor, que o coloca no centro das ciências humanas, do que a feita por Jean-Paul Sartre, em um livro clássico sobre o tema: A função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele – (SARTRE, 1989, p. 21). Se trocarmos escritor por crítico, veremos que a frase assume um sentido mais amplo. Só há crítica de fato quando a abordagem funciona no sentido de nos desvelar as tensões ocultas da sociedade.

    É neste espaço entre estética e ética que se localizam as análises acuradas que Marcos Hidemi de Lima faz em Os desvãos da ordem patriarcal, obra que acompanha as fissuras de um poder nascido no Brasil Colônia, consolidado no Império e que se estende pela República, perdendo força aos poucos. Esta corrosão se dá por meio do ingresso de um elemento perturbador no maquinismo social organizado para durar.

    Transtorna a rotina mantenedora dos privilégios de classe, de gênero e de raça a figura feminina, um tema sobre o qual o crítico já trabalhara em outra obra – Mulheres de Graciliano (LIMA, 2013). Deixando a análise pontual, ele parte agora para uma visão maior, que abarca outros autores e outros espaços sociais.

    Ao entrarem em cena, valendo-se dos canais disponíveis (geralmente de ordem amorosa, sexual ou meramente afetiva), as mulheres produzem um efeito devastador nos equipamentos de conformação das energias dispersoras, sendo, na maioria das vezes, penalizadas por conta de sua força questionadora. Assim, em uma sociedade em que impera um modelo de família baseado na concentração de renda, na propriedade e na ocupação dos cargos públicos, a mulher usa o seu corpo – ou deixa que ele seja usado – como forma de implodir estruturas estáticas, criando descontinuidades que são brechas para a mudança das relações interpessoais. Tira o embate da esfera pública – terreno para ela adverso – e o leva para a esfera privada, a dos sentimentos, do desejo. Em um momento ainda muito centrípeto de nossas organizações sociais, estas trajetórias femininas são fadadas ao fim trágico, que não deve ser entendido como alerta para possíveis punições por sua independência, mas como forma de escancarar a perversão do sistema.

    Marcos Hidemi retoma, para chegar a ferramentas analíticas adequadas ao tema, toda uma linhagem crítica que poderíamos definir como sociológica, que vai de Antonio Candido e Raymundo Faoro aos recentes três Robertos (Roberto Schwarz, Roberto DaMatta e Roberto Reis), uma plêiade de intelectuais comprometidos com a representação dos subalternos em nossa cultura. Conduzido pelas teorias críticas construídas por estes autores, ele chega a uma divisão paradigmática do campo de poder no Brasil no momento de passagem do século XIX para o século XX. É de Reis que vem o binômio de organização dos atores romanescos, divididos em duas categorias bem distintas, numa tradição em que a distinção é uma forma de domínio: os personagens podem pertencer ao núcleo (o centro irradiador de privilégios) ou à vasta área da nebulosa, onde circulam indefinidos os grupos sociais que não conseguem um espaço de realização pessoal independente, tendo que siderar ao redor dos que detêm o mando, ou ao menos as suas insígnias. Esta metáfora extraída da nomenclatura astronômica serve com perfeição para denunciar as tensões de um contrato social conservador e elitista.

    Interessante destacar que, nos pontos de contato entre estas duas esferas, haverá sempre a lógica do favor. Numa sociedade paralisada, carente de oportunidades para os de origem obscura, a ascensão, ou minimamente o usufruto de pequenos benefícios, se dá pelo favorecimento aos que se comportam corretamente (na ótica do núcleo) junto aos que os receberam. A obrigação primeira do agregado – esta figura nascida de tal pacto – é a de saber o seu lugar e reforçar as estruturas onde foi aceito. Se, para os subalternos, a gratidão é um compromisso de manutenção da lógica patriarcal, a ingratidão é a forma de rebelar-se contra o sistema. Esta ingratidão pode se manifestar no adultério, na renúncia, no suicídio. E é uma arma social de que se valem as mulheres.

    Ao propor suas análises, Marcos Hidemi tira destas estratégias qualquer carga moralista. Ele não julga as heroínas por seu comportamento desviante (segundo a casa-grande), aceitando toda forma de mobilidade social. Esta postura crítica dá a estes ensaios um valor extra, de nos ensinar a desarmar as armadilhas judicativas, que tendem a represar a energia simbólica do comportamento dos subalternos. Lemos trajetórias humanas que enfrentam os mecanismos de controle, por isso a necessidade de desenvolver uma tolerância e a valorização delas, sem nos prendermos a amarras moralizantes. Eis a grande qualidade deste livro, que permite uma experiência de humanidade sem visões preconcebidas.

    2.

    Os títulos que compõem o corpus destes ensaios podem ser agrupados a partir de alguns critérios. Vejamos.

    Do ponto de vista histórico, temos uma obra do século XIX (Dom Casmurro, de Machado de Assis – 1899) e quatro do século XX – S. Bernardo, de Graciliano Ramos (1934), Clara dos Anjos, de Lima Barreto (publicada postumamente em 1948), Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso (1959) e Ópera dos mortos, de Autran Dourado (1967). No interior das narrativas, os livros cobrem o final do século XIX e as três primeiras décadas do século XX, período de grandes modificações sociais e estéticas no Brasil. Mas, no âmbito da vida editorial, são livros que praticamente atravessam o século XX, demonstrando assim o trabalho de desconstrução de escritores modernos que enfrentam os valores advindos de outros séculos. A recepção mais tardia em relação à escrita, a de Lima Barreto, um escritor programaticamente afrodescendente, demarca a extensão do controle sobre narrativas questionadoras. Poderíamos dizer que estes livros fundam uma imagem mais liberal do feminino, servindo como antecedentes da liberação sexual que ganhará força a partir de 1968.

    A vetorização da voz também tem uma configuração tensionada. Dom Casmurro, S. Bernardo e Ópera dos mortos estão localizados, enquanto espaço de narração, no núcleo do poder patriarcal: a casa senhorial e a fazenda. É delas que emana a narrativa, que se confunde com o próprio lugar de fala que deve ser questionado. Há um desejo de manter intacto e em pleno funcionamento estes espaços, o que define o sentido centrípeto que se busca dar ao enredo. No outro extremo se encontram Crônica da casa assassinada e Clara dos Anjos, obras marcadamente fragmentárias, em que se mina o sentido construtivo (da casa e da fazenda que funcionam com perfeição), optando por um lugar narrativo em aberto, não resolvido, problematizado, tumultuado, lacunar. Aqui, a própria estrutura está no âmbito da nebulosa, enquanto no outro grupo representa o núcleo.

    Se analisarmos as origens dos escritores, veremos que todos guardam identidades em conflito com o centro. Machado de Assis e Lima Barreto são mulatos e fundam sua obra no Rio de Janeiro, espécie de resumo nacional, pátria de uma miscigenação em curso. O primeiro escamoteia esta origem, mas vê o mundo a partir deste deslocamento identitário feito segredo. Já Lima Barreto elege a condição negra como fulcro de suas narrativas e de sua linguagem, aproximando-se da esfera representacional dos subalternos. Graciliano Ramos coloca em cena a condição nordestina e uma lógica anticapitalista. Lúcio Cardoso e Autran Dourado veem o Brasil a partir de Minas Gerais, de pequenas cidades, da decadência de uma aristocracia que sempre esteve no mando. Em Lúcio Cardoso, a homossexualidade é um caminho de intervenção social, e se expressa não apenas no enredo mas na própria estrutura descontínua da narrativa, para sabotar o racionalismo patriarcal. Em Autran, o deslocamento se dá mais por uma lentidão narrativa, como se o livro quisesse pertencer a outro tempo, um tempo colonial, já vencido. Entre os autores, quem encarna a alteridade radical são Lima Barreto (a negritude) e Lúcio Cardoso (a homossexualidade).

    Assim, as figuras femininas, na imaginação desses homens, são representadas como metonímias de todos os subalternos, inclusive dos graus de subalternidade experimentados por cada um destes autores.

    Por meio desta estratégia, Marcos Hidemi nos leva a ver uma gama muito maior de trajetórias, criando um padrão de análise que permite averiguar um conjunto amplo de obras. A oposição núcleo/nebulosa, da qual ele se vale, a partir de Roberto Reis, funciona como chave para se ler a produção brasileira deste período que poderíamos definir como de enfrentamento dos signos (estéticos e sociais) do patriarcalismo. Nelas estão incluídas as trajetórias de todos os grupos que compõem a nebulosa: pobres em geral, negros, índios, favelados, roceiros, operários etc. Neste sentido, o estudo das mulheres aponta para um verdadeiro painel social, servindo este ensaio como paradigma para outras análises.

    3.

    Se há nestas reflexões uma inversão de valores, positivando os que foram destinados à margem da sociedade, qual deve ser a postura de linguagem do autor? Ao responder isso, identificaremos outra grande qualidade dos ensaios de Marcos Hidemi.

    Evitando hermetismos teóricos, estes textos são escritos numa linguagem aberta, de compreensão plena, sem perder suas propriedades críticas. A presença de outras vozes no livro se dá na medida da necessidade de esclarecer questões já tratadas, pois o autor evita se alongar em debates que nos desviariam de seu traçado analítico. São pontuais e nada incômodas as citações, o que dá ao texto uma fluência muito grande. Lê-se o livro como se fosse um romance (para usar a expressão de Daniel Pennac), o que fortalece o compromisso com uma escrita engajada, em que se busca incluir o máximo de leitores. Esta é uma preocupação fundamental para a democratização da leitura literária, tal como analiso em O lugar da literatura (SANCHES NETO, 2013).

    Assim, verifica-se uma adequação neste livro entre o tema (os subalternos) e a linguagem acessível, numa valorização da língua não como privilégio de classe, mas como instrumental de compreensão do mundo. Como estilo, Os desvãos da ordem patriarcal reforça a valorização dos grupos sociais abordados. Escrita escorreita, mas sem brilhos falsos, sem pretensas profundidades teóricas, tudo focado na clareza de linguagem, sem a qual dificilmente se atinge a clareza dos princípios.

    Com isso, sai-se da leitura com a certeza de que foi desmontado diante de nossos olhos um maquinismo social complexo. E que o modelo crítico que internalizamos nos servirá para ler outras obras, averiguando as mesmas tensões. Porque um livro de ensaios se torna necessário quando nos lega algumas chaves que podem abrir outras obras, ajudando-nos a pensar a produção literária e a história de nossa sociedade.

    É assim esta obra. Sistematiza uma metodologia de leitura, a partir do texto literário, cumprindo desta forma a principal função da crítica, que é permitir que dilatemos por conta própria este trabalho de leitura.

    Eis aqui um exemplo da vocação metonímica de todo bom ensaio.

    Bibliografia

    LIMA, Marcos Hidemi de. Mulheres de Graciliano. Londrina: Eduel, 2013.

    PENNAC, Daniel. Como um romance. Trad. Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

    SANCHES NETO, Miguel. O lugar da literatura: ensaios sobre inclusão literária. Londrina: Eduel, 2013.

    SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1989.


    ¹ Professor-associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e escritor.

    www.miguelsanches.com.br

    PRELIMINARES

    Inicialmente, este trabalho pretendia verificar, nos romances Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, e S. Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, como as protagonistas Capitu e Madalena possuíam alguns traços idênticos entre si, ao buscarem no matrimônio com homens bem-sucedidos (Bento Santiago e Paulo Honório) não somente a ascensão socioeconômica, mas também o estabelecimento de uma relação de igualdade com seus maridos, ação vista como uma espécie de ameaça à hegemonia masculina. Se por um lado essa tentativa de subversão à mentalidade patriarcal empreendida pelas duas personagens femininas acaba malogrando, já que tanto uma quanto a outra morrem, por outro, o insucesso de ambas evidencia, no relato efetuado pelos dois narradores, a crise instaurada dentro dessa mesma ordem patriarcal.

    Em seguida a essa primeira constatação, a pesquisa entendeu que, devido à sua evidente modernidade, o romance machadiano serviria como paradigma da relação conturbada entre o poder masculino e o desejo feminino de partilhar dessa órbita. Estendeu-se, portanto, o alcance para obras romanescas produzidas ao longo do século XX que ainda repetissem essa lógica patriarcal e cujas tramas se circunscrevessem aos três primeiros decênios do século passado, período em que as marcas da ordem patriarcal, ainda que esfacelada, pudessem ser observadas. Desse modo, obedecendo à sequência cronológica das publicações, foram incorporadas a este trabalho, além dos já citados Dom Casmurro e S. Bernardo, as obras Clara dos Anjos (1948), publicação póstuma de Lima Barreto, Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, e Ópera dos mortos (1967), de Autran Dourado.

    Na realidade, antes de serem definidos os cinco romances que compõem este ensaio, a pesquisa tinha caráter mais abrangente, buscando contrapontos em outras produções romanescas. O trabalho pretendia estudar mais obras dos autores citados e de outros escritores aqui não arrolados. Dessa maneira, também fariam parte da pesquisa Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis; Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) e Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), romances de Lima Barreto; Angústia (1936), de Graciliano Ramos; A luz do subsolo (1936), de Lúcio Cardoso; Uma vida em segredo (1964), de Autran Dourado; Fogo morto (1943), de José Lins do Rego, além da inclusão de Lucíola (1862) e Senhora (1875), de José de Alencar, nas quais se observava antecipadamente certa contestação feminina da hegemonia masculina, não tão evidente quanto a que existe na obra machadiana.

    Todavia, tal empreendimento apresentou uma série de problemas. O primeiro deles derivava do fator tempo: havia uma quantidade relativamente alta de obras a serem analisadas. O segundo relacionava-se ao fato de muitas dessas obras já terem sido lidas diversas vezes, o que não inviabilizaria mais uma, mas que seria inevitavelmente contaminada pelas anteriores. Outro inconveniente estava ligado à questão central desse estudo: nem sempre se revelou bastante nítida, nesses quatorze romances, a abordagem de relacionamentos amorosos entre elementos de diferentes classes socioeconômicas, em que fosse claramente apresentada a figura feminina como desencadeadora da ruína patriarcal.

    Em virtude de tudo isso, vários cortes foram necessários, sendo enfim selecionados os romances mais representativos de cada autor escolhido, de modo a abarcar a produção ficcional de aproximadamente setenta anos da moderna literatura brasileira, tomando como ponto de partida o permanentemente moderno Machado de Assis. Por conta dessas exclusões, as obras de Alencar passaram a figurar no texto apenas para fazer contraponto com a verdadeira revolução proposta pela prosa machadiana, sobretudo a que surge a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas. Também ficaram reduzidos a pequenos comentários dentro deste trabalho os dois romances de Lima Barreto. Como os capítulos sobre S. Bernardo, Crônica da casa assassinada e Ópera dos mortos demandaram demasiado esforço e resultaram em textos bastante densos, as outras obras mencionadas de seus autores acabaram não tendo nenhum aproveitamento, bem como não houve a possibilidade de fazer um capítulo especificamente sobre Fogo Morto, como se cogitou por certo tempo.

    A despeito dessa redução de quatorze para cinco romances, essa análise consegue oferecer com bastante fidelidade o retrato de uma estrutura patriarcal em processo de decadência nos primeiros trinta anos do século passado. Mais do que isso, este trabalho mostra, na esfera do plano ficcional (que é um reflexo da realidade), o papel fundamental da mulher enquanto agente desestabilizador de uma ordem incompatível com a modernização da sociedade brasileira. E apresenta também a resistência de um poder geralmente exercido por homens em ceder espaço para o sexo feminino.

    A opção por analisar os cinco romances selecionados relaciona-se também a uma sistematização de personagens observada em A permanência do círculo (1987), tese de doutorado de Roberto Reis, transformada em livro, na qual o ensaísta faz um rápido mas eficaz painel da literatura brasileira, partindo das principais obras de José de Alencar, dos quais se ocupa quase completamente no primeiro capítulo, passando rapidamente por Aluísio Azevedo e Machado de Assis, com o objetivo de mostrar o modelo hierárquico senhor-escravo, branco-índio, fazendeiro-sertanejo, homem-mulher, pai-filho a predominar nos textos literários. Derivados dos modelos anteriores, os pares pai-filho e masculino-feminino estão presentes nas análises que Reis empreende no segundo e terceiro capítulos de seu trabalho.

    Detendo-se na análise da literatura oitocentista, Reis afirma que a sociedade obedece a uma constituição hierárquica, predominantemente masculina, que se manifesta no binômio patriarcalismo/paternalismo. Dessa forma, o ensaísta estabelece uma tipologia de personagens por meio das metáforas núcleo e nebulosa, correspondentes aos detentores do poder e aos despossuídos, observando que "No centro - núcleo -, dominando, o senhor/o homem/o pai/o branco/o fazendeiro; na periferia - nebulosa - dominado, o escravo/a mulher/o filho/o índio/o sertanejo (e poderia incluir o gaúcho, o jagunço) (REIS, 1987, p. 44). Essa estrutura hierárquica, segundo Reis (1987, p. 44), mantém a permanência do estreito círculo, [que] atravessa o século XX, ainda que o ocupante da casa do dominador possa, por exemplo, se chamar coronel, e o da casa do dominado, jagunço. Mudam as figuras mas persiste a estrutura".

    Seu segundo capítulo, em que se evidencia o declínio da classe senhorial, é dedicado à análise da questão memorialística na literatura brasileira confundindo-se com a obra ficcional, comparando o romance O amanuense Belmiro (1937) e as memórias contidas em A menina do sobrado (1979), de Cyro dos Anjos. No capítulo seguinte, nessa mesma linha de entrecruzamento de ficção e memória, Reis estabelece uma relação entre Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, e o livro de memórias Por onde andou meu coração (1966), de Maria Helena Cardoso, irmã do escritor. Enfim, no último capítulo, o autor encerra suas observações debruçando-se sobre Ópera dos mortos (1967), de Autran Dourado, na qual o memorialismo é substituído pelo mito. Em suma, nessa leitura da produção ficcional do século XX promovida por Reis, sobressai-se a manutenção dos valores do patriarcalismo, embora questionado.

    Esse questionamento à ordem patriarcal vai ser o esteio sobre o qual se fundamenta a análise dos romances estudados neste trabalho. Como pode ser constatado, os romances de Lúcio Cardoso e Autran Dourado são contemplados em capítulos específicos por Reis, enfatizando a vertente memorialística enquanto reação de seus autores à bancarrota do mundo patriarcal. Aproveitadas nessa pesquisa, as duas obras recebem leitura em clave diferente, já que a tese sustentada, o relacionamento afetivo entre elementos pertencentes a classes sociais diferentes - vale dizer, do núcleo e da nebulosa -, não se realiza plenamente. Portanto, neste trabalho a preocupação centra-se nos pares amorosos marcados pelo signo da incompatibilidade.

    Convém lembrar que Reis utiliza as terminologias núcleo e nebulosa para a compreensão das personagens da literatura oitocentista. Nas demais análises efetuadas pelo ensaísta, são outras as metáforas utilizadas, somente retomando os dois conceitos ao concluir que a literatura brasileira está construída sobre uma linhagem romanesca geralmente dedicada a tratar sobre os ocupantes do poder, o que não impede que surjam obras tais como Memórias de um sargento de milícias, Macunaíma, Grande sertão: veredas ou A hora da estrela, nas quais os dominados, ainda sendo parcialmente tolhidos por seus narradores, tentam conquistar um lugar ao sol.

    De acordo com a concepção de Reis (1987, p. 32), no contexto da produção ficcional no Brasil-Colônia ou Imperial, o núcleo configura-se como um espaço predominantemente ocupado pelo senhor e patriarca, junto com os que habitam a casa-grande (1987, p. 32), ao passo que, na outra extremidade, circulam na nebulosa "categorias étnicas (o negro e o índio) e sociais (o jagunço, o sertanejo e o gaúcho), aglutináveis na medida em que não figuram no núcleo, sendo subjugados na base de uma relação de dominação hierárquica (REIS, 1987, p. 32). Ainda conforme o raciocínio de Reis, naquilo que interessa a este estudo, nesse quadro senhorial e patriarcal, trespassado pela hierarquia, caberia situar a mulher, o mais das vezes sujeitada ao homem, visto ser esta sociedade, focalizada pela Literatura, eminentemente masculina" (REIS, 1987, p. 32), ou seja, mesmo pertencendo à classe senhorial, leia-se núcleo, a mulher tinha papel subserviente ao senhor, permitindo inferir que ela, de certa forma, pertença à nebulosa.

    Nos romances estudados neste trabalho, a partir das terminologias núcleo e nebulosa, manteve-se a ideia de Reis de identificar os despossuídos em geral e figuras femininas à esfera da nebulosa. Todavia, ao contrário de Reis, a pesquisa usa os dois conceitos para avaliar a produção literária moderna, tomando como ponto de partida Dom Casmurro, só pertencente à literatura oitocentista por conta de sua data de publicação, considerada por Helen Caldwell, John Gledson e Roberto Schwarz uma obra vinculada à modernidade literária brasileira.

    Poderia mesmo se afirmar que, nas obras analisadas, ainda persistem as figuras do senhor ou patriarca enquanto representações do núcleo. Cumpre lembrar que Reis utiliza frequentemente, no lugar da metáfora do núcleo, a palavra centro como um sinônimo. Tal ideia de espaço central pressupõe

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