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Graça Perdida
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Graça Perdida

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Não houve aviso. Não houve como se preparer. Acreditava-se que o fim do mundo viria devagar, ou com barulho, ou talvez tão rápido que fim seria um grande e escuro nada. Acreditava-se que haveria notícias voando sobre o iminente apocalipse. Alguma dica de que a raça humana morreria. Acreditava-se...

Zoe está sozinha desde a adolescência, quando a tagédia atingiu sua família. Vivendo em uma remota cidade do interior, ela se isolou da sociedade. Seu amigo de longa data, Adam Boggs, a deixou ainda mais devastada quando partiu para a faculdade e cessou a comunicação. Ao voltar à cidade para uma visita, eles tentam se reconciliar. A manhã seguinte trás o fim da vida que conhecem.

Fugindo para segurança, seus caminhos se cruzam com os de outros sobreviventes. Não demora muito para perceberem que os mortos não são a única coisa a se temer. Enquanto o mundo é dominado pelos mortos, Zoe e Boggs se aproximam em um romance tórrido, que nenhum dos dois experava. As coisas se complicam mais quando Zoe se descobre amaldiçoada por um elo mental com os mortos. Suas vidas basicamente se resumem a sobreviver, superar as dificuldades e amar um ao outro.

Livro um da Série Graça. Indicado para maiores de dezoito anos.

LanguagePortuguês
PublisherM.
Release dateMay 10, 2018
ISBN9781547520817
Graça Perdida

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    Graça Perdida - M. Lauryl Lewis

    GRAÇA PERDIDA (Livro 1 da Série Graça)

    copyright 2012 M. Lauryl Lewis

    PRÓLOGO

    A fina névoa azul era impossível de ser vista descendo do céu à noite. Ela cobria tudo em seu caminho: casas, carros, brinquedos deixados pelas crianças nos jardins, o chão. Ao nascer do sol seria impossível detectá-la. O véu da substância tóxica era fino, mas suficiente para causar o dano ao qual era destinado. Qualquer desafortunado que estivesse fora no momento da contaminação morreria. Os aviões que estivessem voando naquela noite seriam os últimos a fazê-lo.

    A escuridão da noite daria lugar à luz do dia, como sempre foi. As pessoas acordavam a procura do café da manhã preguiçoso do fim de semana. As mães preparavam seus filhos para um dia de brincadeiras. Os cães choravam para sair. Os mortos se levantavam. A Graça de Deus se perdia.

    Capítulo 1

    O sol nascia sobre as Cascatas pintando o horizonte com tons de rosa e laranja. Quando eu era criança meu pai sempre dizia que uma manhã com estas cores era o prenúncio da chegada de uma tempestade. Com um calor que sobrou do último verão no dia anterior e o canto dos pássaros recebendo um novo calor, eu me recusava a crer que a perfeição daquele dia seria destruída. Meu amigo da vida toda, Adam Boggs, estava de volta da faculdade para o verão e havíamos combinado de passar um tempo juntos. Nós crescemos juntos, nossos pais eram grandes amigos e vizinhos. Boggs era três anos mais velho e costumava cuidar de mim como um irmão mais velho. Quando ele deixou nossa cidade natal de Silvana para estudar no outro lado do estado eu me senti extremamente perdida e sozinha. Nos correspondemos por meses até que suas cartas diminuíram até cessarem. Ele esteve dolorosamente ausente durante o pior momento da minha vida, a repentina morte da minha irmã e meus pais, assim como meus dois últimos anos do ensino médio.

    Ele havia me enviado uma carta no começo do mês me dizendo que estaria na cidade e queria me ver. Meus sentimentos estavam confusos, mas concordei em passar o fim de semana com ele. Minha vida era bem parada, então não tinha desculpa para não aceitar. Eu havia me formado no ensino médio dois anos antes e ainda vivia com o que meus pais haviam deixado no testamento. Não trabalhava, mas passava muito tempo em trabalho voluntário com crianças na Reserva Indígena local. Meu pai era de uma tribo indígena americana e havia se devotado muito às crianças de lá. Dar continuidade a sua causa me ajudou a lidar com o vazio na minha vida.

    Boggs e eu agora estávamos sentados na varanda de uma velha cabana na floresta há muito abandonada. Era o lugar onde passávamos horas conversando e jogando cartas. O chalé de um cômodo já não tinha mobília e cheio de pó quando o encontramos ainda criança. Em algum momento, no meio da adolescência, colocamos um sofá de vime de dois lugares, uma mesa dobrável e cadeiras. Costumávamos passar horas aqui compartilhando nossos sonhos e esperanças e inventando histórias sobre quem havia vivido neste lugar. Todo verão passávamos pelo menos uma noite por semana na cabana, acendendo a lareira de pedra e assando marshmallows ou salsichas. Dormir no chão frio de madeira era horrível e sempre conseguíamos acordar a tempo de ver o sol nascer. Foi um santuário quando a vida foi dura. Parecia perfeito que agora fosse o lugar de cura para nossa amizade.

    O banco de madeira em que estávamos sentados era familiar, alisado pela idade e pálido pelo sol. Havíamos trocado pouco mais de algumas palavras na noite anterior. Ao invés disso, ficamos sentados perto da velha lareira bebendo cerveja, nossa versão adulta de s’mores[1].

    - É bom estar de volta aqui, Zoe. Senti mais saudade do que consigo dizer.

    Eu sorri gentilmente para ele:

    - Eu também, Boggs. Mas, não sei se vai ser igual ao que era. Lembra-se de quando éramos crianças?

    Aquele que já foi meu melhor amigo me olhou com seus olhos azuis claros. Seu cabelo desgrenhado era castanho escuro, quase preto e sempre duas ou três mechas soltas fora do lugar. Eu costumava colocá-las de lado sem nem pensar duas vezes, mas agora parecia errado. Devo ter parecido entediada, porque ele suspirou e se levantou.

    -  Zoe, não somos mais crianças. A vida é complicada.

    Ele respirou fundo e colocou as mãos no bolso grande na frente do seu moletom preto com capuz. Eu aproximei meus joelhos do meu peito e pus meus braços ao redor deles. Com um metro e cinquenta e cinco eu não era grande, mas me senti muito menor naquele momento.

    - Algumas coisas aconteceram. As coisas estão apenas...diferentes...agora. Ele continuou.

    - Coisas que você não pode me contar? Nós éramos amigos, Boggs. O que eu fiz para que você se afastasse tanto?

    Eu ainda abraçava minhas pernas e senti as lágrimas começarem a minar em meus olhos. Boggs voltou ao banco, mãos ainda no moletom, e se sentou ao meu lado. Respirou fundo, tirou uma das mão do bolso e a pôs sobre a minha. Sua mão era áspera e quente e bem maior que a minha. Seu toque me lembrou da intimidade que tínhamos e a tristeza encheu meu coração.

    -  Você não fez nada, Zoe.

    -  Então, o que é? Usei minha manga para secar os olhos.

    Boggs olhou para seu colo e pareceu pensativo por um bom tempo.

    - Ano passado, na faculdade eu conheci alguém. Seu nome era Susan. É Susan. Ela é a amiga de um amigo e eu estava bebendo uma noite.

    Ele parou de falar, soltou minha mão e se levantou novamente. Olhando para o outro lado, ele continuou:

    - Ela estava grávida, Zo.

    Ele respirou fundo e levantou a cabeça.

    Eu esperei quieta que ele continuasse. Não sabia ao certo o que dizer.

    Ele enfiou as mãos de volta no bolso do moletom. Percebi que ele chorava. Eu me levantei e fui até ele e segurei em seu braço. Ele me olhou brevemente, fungando.

    - Ela me contou uma semana depois de fazer um aborto. Eu não a amava. Sequer a conhecia direito.

    Ele olhou para mim e, desta vez, o castanho dos meus olhos encontrando o azul dos dele. Meu cabelo e pele eram claros como os da mamãe, mas eu tinha os olhos escuros de meu pai.

    - Isso acabou comigo, Zoe. Não como voltar a ser criança. Sem preocupação. Não contei a ninguém sobre isso. É muito difícil. E eu nunca quis te desapontar.

    Eu o abracei e sussurrei em seu ouvido:

    - Sinto muito, Boggs.

    Pude sentir suas lágrimas em meu pescoço. Ele tinha o cheiro do mato e do fogo que acendemos na noite anterior. Ele sempre falava sobre como queria ter filhos um dia. Boggs era uma cara sensível apesar de sua aparência rústica. Ficamos ali por um longo momento em um abraço entre amigos. Uma brisa passou nós dois sentimos o cheiro ao mesmo tempo. Era o fedor ofensivo e inconfundível da morte. Nos entreolhamos curiosamente e o momento foi interrompido pelo som de um galho quebrando. Nos viramos em uníssono em direção ao Senhor Anderson, dono da Fazenda Silvana e Alimentos.

    O Senhor Anderson havia sofrido um acidente fatal quatro dias antes e seu enterro aconteceria no próximo fim de semana. Foi a maior notícia em nossa pequena cidade natal o acidente causado por adolescentes bêbados que fugiram da cena e foram pegos no dia seguinte. Somente a morte com suas garras congelantes poderiam dar aquele tom de cinza, seu traje de funeral de sarja marrom caindo para a frente de suas costas falsas. Ele parecia olhar em nossa direção sem foco com olhos sombrios sem piscar enquanto seu corpo balançava descoordenadamente. Seu braço esquerdo flacidamente pendurado ao lado do tronco. Ele tinha sangue coagulado saindo de sua mandíbula aberta e a cada passo cambaleante um gemido inumano escapava do peito. Na mão direita ele segurava o que parecia uma mecha de cabelo loiro de médio comprimento com pedaços de terra, folhas e sangue. Ele estava perto da linha de árvores que circundavam a cabana e se movendo em nossa direção.

    Eu senti um arrepio subir pelos braços em direção ao pescoço enquanto Boggs instintivamente apertou um braço em minha cintura.

    - Senhor Anderson?

    Eu chamei em tom descrente e abafado, ainda não percebendo completamente que o impossível estava diante de nós. Boggs soltou da minha cintura e agarrou minha mão começando a me puxar para dentro da cabana dilapidada.

    - Senhor Ander...- Minha voz falhou.

    - Shhhh, Zoe.- Sussurrou Boggs – Não faça barulho!

    O homem morto reagiu à voz de Boggs com um grito aterrorizante. Eu fui puxada para dentro da pequena cabana. Quando entramos, Boggs fechou a porta e se apoiou nela, parecendo surpreso e em pânico. Nos olhamos com olhos arregalados. Podíamos ouvir os passos desajeitados do Senhor Anderson se aproximarem da cabana ao passar pela grama seca e alta e pelas ervas que já foram um jardim muito bem cuidado. Seus gritos se tornaram gemidos de desespero.

    - Boggs? – eu sussurrei – aquele era o Senhor Anderson, né? – perguntei ainda não entendendo totalmente a gravidade da situação. Dava para ouvir Boggs respirando superficialmente assim como os sons do homem morto se aproximando. – É algum tipo de brincadeira? Ele está morto. – suspirei.

    Boggs se aproximou de mim segurando meus ombros com suas mãos fortes, mas trêmulas.

    - Eu sei, Zoe. Não tenho certeza do que está acontecendo aqui, mas nós temos de sair desta porra. – ele disse baixinho. Ele me olhou esperando algum sinal de entendimento e assenti rapidamente. O cheiro ofensivo da morte invadia o quarto em que estávamos, ardendo em nossos narizes.

    - Pegue sua mochila e vamos sair pelos fundos. – ele me apressou. Novamente assenti.

    O Senhor Anderson já estava na varanda. Podíamos ouvir seus pés se arrastando pelas tábuas velhas rangendo ao se aproximar da entrada. Sabendo que não havia tranca na porta desgastada, Boggs arrastou o sofá de vime e bloqueou a entrada. O barulho parecia agitar o velho, que começou a arranhar e bater na porta. O sofá leve não foi páreo e a porta começou a abrir para dentro.

    - Agora, Zoe! Saia pela janela de trás! – gritou Boggs ao me puxar pela manga da minha camisa. Uma das únicas janelas da cabana virada para oeste. As vidraças há muito já estavam quebradas e as cortinas, esfarrapadas. Boggs pegou minha mochila e a jogou para fora colocando sua cabeça para fora para ver os arredores.

    - Vai agora e corra para a floresta. Eu vou estar bem atrás de você!

    Assim que sentei no peitoril e balancei minhas pernas em um movimento fluido senti Boggs me empurrar com força para me encorajar enquanto caía alguns metros para o chão e rolava para o lado. Meu quadril doeu pelo impacto, mas ignorei a dor e me forcei a ficar em pé. Eu peguei minhas coisas enquanto Boggs caía ao meu lado e comecei a correr. Dava para ouvir os gemidos do Senhor Anderson ficarem mais distantes e foquei no ritmo do som dos nossos pés correndo pela floresta.

    Sem fôlego e com dor do lado, diminui a velocidade ao adentrarmos a floresta. Eu sabia que Boggs estava indo mais devagar do que podia o tempo todo para se certificar de que ficaria ao meu lado. Ao parar para recuperar o fôlego me estiquei para tocar meus sapatos e alongar. Após uma pausa olhei para meu amigo e engoli meu orgulho:

    - Desculpa – tentei respirar mais devagar para poder falar – eu tinha de parar.

    Ele acenou com a cabeça, sem lutar pelo ar como eu e respondeu:

    - Tudo bem. Mas, temos de continuar nos movendo.

    Concordei com a cabeça.

    - Minha casa está a mais ou menos um quilômetro e meio ao sul daqui. Acho que devemos ir para lá. Não tenho certeza de que ele esteja nos seguindo. Minha casa é mais perto que a sua e deixei meu celular em casa porque aqui não tinha sinal de qualquer jeito. Vamos para lá e pediremos ajuda.

    Eu confiava no Boggs, então assenti novamente com a cabeça:

    - Sua casa, então – eu disse olhando em seus olhos.

    - Acha que consegue correr, nenê? – seu velho apelido irritante para mim, mas que agora me confortava.

    - Mais rápido que você, Boggs – brinquei com uma voz fraca. Nenhum de nós sorriu, ao invés disso, nos olhamos em um momento de compreensão.

    - Me dá sua mochila? Eu carrego.

    Entreguei minha mochila ao meu amigo e saímos com um senso renovado de urgência para alcançar a segurança.

    Samambaias, bordos e arbustos de mirtilo ficavam borrados ao passarmos correndo. Eu ouvia meu pulso em meus ouvidos e eu fazia meu melhor para manter a compostura. Lutar ou correr me veio a mente e eu sabia que aquele era o momento de correr. Finalmente chegamos a um córrego tranquilo. Diminuímos a velocidade ao nos aproximarmos da água e nos entreolhamos assim que sentimos o cheiro da morte de novo. Parecia ainda mais forte aqui e ambos tínhamos a aparência preocupada em nossas faces.

    - Boggs? – eu disse bem baixinho. Ele pôs o dedo na boca. As coisas ao nosso redor pareciam estranhamente quietas. Eu percebi que mesmo a Interestadual estava quieta. Tudo o que ouvíamos agora era a nossa própria respiração e a água correndo suavemente pelo seu traçado.

    Boggs sinalizou com sua mão para que eu ficasse parada enquanto ele se arrastava em direção a uma árvore caída. Obedeci engatinhando de quatro para me agachar ao lado dele atrás do tronco. O chão estava molhado com o musgo formando um cobertor úmido. Nós vimos a parte de trás do bairro ao qual os dois estavam acostumados. Havia apenas onze casas no total, incluindo as nossas duas. A dele era a mais próxima, de costas para a cerca viva verde onde estávamos escondidos. Não vimos movimento algum, nada suspeito. Senti o hálito quente de Boggs na minha bochecha enquanto ele sussurrava para mim. Ele ainda cheirava um pouco à cerveja que havia bebido na noite anterior:

    - Precisamos ficar quietos, Zo.

    - Eu sei.

    -Deixa eu ir na frente. Vou me dirigir para nosso quintal e podemos entrar pela porta de correr, meus pais nunca a trancam.

    Senti ele apertar minha mão, algo que não tinha nem ideia de que estava segurando. Nos levantamos devagar, Boggs subiu no tronco caído e logo se virou para me ajudar. Com minha altura , eu tinha que me sentar sobre o tronco velho e enorme, balançar minhas pernas e escorregar para baixo até meus pés tocarem o chão.

    Assim que pisamos no chão mole da floresta, ouvimos um grito alto e agudo cheio de dor e agonia. Senti um frio na barriga como nunca havia sentido antes e os pêlos do meu braço se eriçaram. Meus pés não queriam se movimentar a frente. Pressenti perigo na direção em que precisávamos ir. Ainda segurando minha mão, Boggs me forçou a me movimentar. Meu quadril reclamou de novo e eu me contraí. Boggs me puxou para baixo de volta ao chão da floresta, onde nos reunimos para que ele pudesse falar comigo.

    - Zo, qual o problema?

    - Caí sobre meu quadril. Com certeza não é nada, Boggs. Sério.

    - Quer que eu te carregue?

    - De jeito nenhum. Sério. Estou bem. Vamos entrar logo. Por favor?

    Ele estudou meu rosto por um momento, mas acabou assentindo. Ele se levantou e estendeu a mão para mim.

    Atravessamos o riozinho raso que separava a floresta das casas da redondeza. Os arredores se desfocavam enquanto nosso passo se acelerava com nosso objetivo a vista e se aproximando. Os gritos cessaram tão rápido quanto começaram.

    A recém pintada entrada dos fundos da casa dos pais do Boggs estava a alguns passos de distância, mas parecia levar uma eternidade para chegar. Ao ver meu próprio reflexo desgrenhado na porta de vidro me assustei e comecei a gritar. Boggs rapidamente colocou sua mão em minha boca. Com o outro braço ele me abraçou protetivamente e segurou firme. Tentei reduzir minha respiração desejando que o coração batendo forte em meu peito se acalmasse.

    Ao longe ouvimos uma explosão bem alta e um momento depois sentimos o impacto como uma leve mudança de pressão no ar. Fechei meus olhos, segurando as lágrimas que lutavam para escapar. Boggs soltou a mão de minha boca para abrir a porta. Meus ouvidos estavam zumbindo, mal ouvi a porta deslizar para abrir. Ainda me segurando firme contra seu corpo Boggs me puxou para dentro e rapidamente fechou a porta atrás de nós. Ao me soltar um pouco, ele trancou a porta e fechou as cortinas. Estávamos no porão da casa de seus pais, que era gélido e escuro por ser parcialmente abaixo do nível do solo. Minha boca estava seca e meu coração continuava batendo forte em meu peito. Ouvimos lá fora pneus cantando seguidos de vidro quebrando e metal rangendo alto. A casa estremeceu com outra explosão, desta vez bem mais perto. Novos gritos começaram. Me dirigi ao sofá que ficava embaixo de uma janela que ficava na parte de cima da parede, no nível do chão e dava para o jardim da frente. Nunca havia sentido tanto medo. Me ajoelhei nas almofadas do sofá com estampa floral marrom e laranja desbotado e me atrevi a olhar para a rua a frente. Os arbustos estavam bem estabelecidos e bloqueavam nossa visão. Boggs se joelhou ao meu lado do mesmo jeito que eu. Pela primeira vez desde que entramos na casa, um de nós falou:

    - Acha que estamos seguros? – perguntei. Minha voz fraquejou.

    - Não – foi tudo que Boggs disse enquanto olhava para a rua. Depois de uma longa pausa ele se virou para mim – Não consigo ver nada, Zo, mas acho que devemos sair e encontrar algum lugar seguro. Minha Explorer está na garagem. Acho que devemos pegar o que conseguirmos e partir.

    - Para onde iremos? – perguntei, ainda falando sussurrado. Meu corpo tremia.

    Ele chacoalhava a cabeça, uma gota de suor descia pela têmpora – Eu não sei. Vamos ver na TV se tem alguma notícia.

    Concordei com a cabeça. Ele desceu do sofá e se arrastou até a TV que estava no chão. Era um aparelho velho, do tipo que não tinha controle remoto. Boggs girou o botão e esperou. Nada aconteceu.

    - Uma daquelas explosões deve ter sido um transformador –eu resmunguei mordendo a unha do meu polegar.

    - É, provavelmente.

    Eu estava quase derramando lágrimas. Boggs veio e se sentou ao meu lado no sofá surrado. Me olhou nos olhos segurando minha cabeça para ter certeza de que eu estava prestando total  atenção.

    - Nós temos de aguentar, Zoe, ok?

    Concordei com a cabeça.

    - Precisamos ir lá em cima, pegar água, comida, roupa, dinheiro, cobertor como se fôssemos ficar fora alguns dias. Você pode me ajudar com isso?

    Concordei novamente com a cabeça, ainda lutando com as lágrimas.

    - Ok, vamos lá. Fica longe das janelas. – Ele se levantou e me estendeu uma mão. Segurei sua mão e me levantei.

    - Nossa, Zoe. Você está sangrando. – ele estava olhando para minhas calças. Ele se ajoelhou para ver onde o sangue do meu quadril havia manchado meu jeans.

    - Está tudo bem – eu disse fungando. Não queria que ele soubesse que estava começando a doer.

    - Vamos olhar isso lá em cima. Sem discussão.

    Ele caminhou para o outro lado da sala, em direção a escada e eu o segui. Subimos os degraus, Boggs à frente. O patamar que ficava na metade da escada rangeu quando pisamos nele, o que nos fez parar. Agora em frente à porta principal da casa escutamos gemidos sobrenaturais vindos de fora. Assim que Boggs se aproximou da porta para verificar o cadeado eu recuei.

    - Boggs, seus pais ainda estão no Arizona, né? Eu sussurrei.

    - É. Por quê?

    - Acho que ouvi algo lá em cima.

    Boggs se colocou a minha frente de novo, bem baixinho disse:

    - Fique aqui, Zoe.

    Antes que pudesse discutir, ele largou minha mão e já havia subido metade do último conjunto de degraus. Eu senti meu estômago cair, o gosto amargo de bile subia pela garganta. Enjoada de tanto medo vomitei no primeiro degrau abaixo do patamar. Usei a parte de baixo da minha camiseta para limpar a boca. Procurei escutar algum sinal de Boggs, mas só ouvia o gemido horrível que vinha de fora. Criei coragem para olhar pela pequena vidraça na porta que permitia bisbilhotar visitantes. Na rua eu podia ver o carro que havia batido, virado de lado com fumaça saindo do capô. Ele estava a mais ou menos meia quadra e havia invadido o jardim de um casal idoso que morava ali desde quando conseguia me lembrar. A casa dos Robinsons ficava do outro lado da rua, ao lado da minha. Havia uma mulher com a cara no gramado. Ela estava usando shorts branco e pequeno, agora manchado de sangue e um top de biquíni florido verde e branco. Pelo cabelo vermelho flamejante eu sabia que era Nicole Park, a mulher de meia idade que havia se mudado ano passado. Eu sabia que ela estava morta por sua pele profundamente pálida e a quantidade enorme de sangue ao seu redor. O braço esquerdo havia sido arrancado e o toco continha músculo e ligamentos dilacerados. O bairro terminava em uma rua sem saída, que estava parcialmente em minha linha de visão. Dava para ver várias figuras se ajoelhando ao redor de alguma coisa. Seus movimentos não eram naturais. Não muito longe delas dava para ver uma bicicleta caída no chão com roda traseira ainda girando e um par de pernas que não estavam ligadas a um torso. Havia tanto sangue. Eu devo ter entrado em choque porque eu reagi com risada. Ninguém em sã consciência riria diante de uma cena tão terrível.

    - Zoe? – chamou Boggs – tudo bem?

    Segurei minha mão sobre minha boca tentando sufocar o riso que saia não ser apropriado ao momento. Minhas risadas viraram soluços, ainda abafados pelas minhas próprias mãos.

    - Zoe, shhhh. Não tem ninguém lá em cima. Eu olhei por toda parte. – ele desceu os degraus de dois em dois e me encontrou no patamar. Ele pegou minha mão livre e me guiou para cima. No cinto de sua calça ele estava carregando a pistola Kahr calibre .45 de seu pai. Eu sempre detestei que a família dele tivesse armas. Nesse momento, no entanto, achei reconfortante a visão de uma arma.

    Na sala de estar, Boggs foi até uma das mesas de canto e pegou seu celular. Eu assisti enquanto ele apertava alguns botões e escutava:

    - Sem serviço, Zo. Vamos pegar o que pudermos e vamos dar o for a daqui.

    - Não sei se consigo fazer isso, Boggs. Isso não pode ser real. – eu podia ouvir a histeria se formando na minha voz.

    Ele me pegou em seus braços e me apertou:

    - Vamos fazer isso juntos, Zoe. Apenas aguente um pouco mais, por mim? – e me beijou a testa.

    - Tem mais deles lá fora, - eu disse em uma voz assustada – eu os vi, lá fora.

    Ele balançou a cabeça e me beijou a testa novamente –Vamos até a cozinha para olharmos esta perna.

    Fomos juntos até a cozinha. O cômodo era iluminado por uma janela panorâmica que dava para a cerca viva de onde acabáramos de vir. Eu fiquei lá olhando pela janela, vendo as folhas das árvores dançando com a brisa suave.

    - Zoe, tira o seu jeans. – Em qualquer outro momento eu faria uma piada. Ao invés disso, desabotoei, baixei o zíper e tirei sem dizer uma palavra enquanto Boggs se dirigiu à despensa.

    - Minha mãe tem um kit de primeiros socorros aqui. Vamos leva-lo conosco. – ele foi até a pia – Você consegue subir aqui para que eu veja e limpe, Zo?

    - É. Acho que sim. – Fui até a pia e pus minha mão no balcão atrás de mim e me levantei, me contraindo com a dor.

    - Está doendo muito? – Ele perguntou.

    - Não muito. – eu menti.

    Ele se curvou para olhar mais de perto o ferimento no

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